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Unicef cola na quebrada para promover 1 milhão de trabalhos decentes

Lançamento da Campanha 1 milhão de oportunidades da Unicef na Agência Solano Trindade, no Campo Limpo, na periferia de São Paulo  - Divulgação
Lançamento da Campanha 1 milhão de oportunidades da Unicef na Agência Solano Trindade, no Campo Limpo, na periferia de São Paulo Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

30/10/2020 04h00

A vida está puxada para a juventude periférica, sim. O desemprego alarmante piorou com a pandemia, as poucas vagas do mercado seguem disputadas entre os que tiveram mais acesso ao ensino de qualidade e à tecnologia que, por sua vez, é pouco acessível e está reduzindo os postos de trabalho. Pesquisas validam tudo isso e vão além.

De acordo com a consultoria McKinsey Global Institute, só no Brasil, 15,7 milhões de trabalhadores serão afetados pela automação até 2030. Vagas de pouca qualificação vão sumir do mapa e as que surgirem vão exigir novas competências do mundo digital, cada vez mais veloz e impactante. As desigualdades podem aumentar entre os mais vulneráveis e sem formação profissional.

Porém, como diz Mano Brown,"nada como um dia após o outro dia"...

Para enfrentar esse cenário, o Unicef Brasil (Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância) acaba de lançar o programa "1 milhão de oportunidades", voltado para adolescentes e jovens de 14 a 24 anos. Em parceria com grandes empresas, a sociedade civil e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a entidade assumiu o desafio de, em dois anos, "fazer a maior articulação do país pela juventude do Brasil para gerar oportunidades de formação e trabalho decente para os mais vulneráveis".

É mais do que uma boa notícia.

Oportunidades geradas no primeiro dia da iniciativa 1 milhão de oportunidades - Reprodução site 1Mio/Unicef - Reprodução site 1Mio/Unicef
Oportunidades geradas no primeiro dia da iniciativa 1 milhão de oportunidades
Imagem: Reprodução site 1Mio/Unicef

Para começar, trabalho decente não é um bico ou emprego qualquer. O conceito, formalizado pela OIT em 1999, sintetiza, nas próprias palavras da organização, "a missão de promover oportunidades para que homens e mulheres obtenham um trabalho produtivo e de qualidade, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humanas".

Criada em 1919 como parte do tratado de paz que encerrou oficialmente a Primeira Guerra Mundial, a OIT é responsável pela formulação e aplicação das normas internacionais do trabalho. Para os países que participam da organização, o Brasil entre eles, trabalho decente é condição fundamental para a superação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável. Não é pouca coisa.

Assim, na prática, o que se espera do programa "1 milhão de oportunidades" é capitalismo que respeita os direitos do trabalho, promove atividades produtivas e de qualidade, amplia a proteção social e fortalece o diálogo social entre diferentes setores da sociedade. É o que a juventude periférica precisa, segundo ela mesma.

E daí vem outra boa notícia.

Para criar a plataforma do programa, carinhosamente chamada de 1Mio, o Unicef convidou e ouviu atentamente as sugestões de um grupo de 20 jovens de diferentes periferias de todo o Brasil. Eles se tornaram o conselho consultivo da iniciativa e isso também não é um mero detalhe, mas peça fundamental de toda a engrenagem do acesso aos empregos qualificados - além de uma dessas reivindicações gritantes que há décadas é aguardada pela quebrada. Ainda não é comum, infelizmente, grandes instituições, executivos ou gestores convidarem seus "assistidos" de projetos sociais para sentar na mesa de decisões.

Entre os experts da quebrada que foram ouvidos e contaram sobre suas dores e dificuldades para chegar ao mercado de trabalho estão jovens ativistas, estudantes, trabalhadores desde muito cedo ou que tiveram que largar os estudos em algum momento. Há empreendedores e articuladores culturais das favelas e dos movimentos negro ou LGBT. Foram ouvidos negros e pardos, indígenas, adolescentes e jovens de periferias urbanas, rurais e pessoas com deficiência. Nos relatos de suas trajetórias de vida há o enfrentamento do racismo, o funk, a falta de grana para condução, a gravidez adolescente ou a missão de ser primeira pessoa da família a cursar faculdade.

Lançamento da campanha 1 milhão de oportunidades da Unicef na Agência Solano Trindade, no Campo Limpo (SP)  - Divulgação  - Divulgação
Adriana Barbosa, da Feira Preta, foi a Mc do evento de lançamento que ocorreu na Agência Solano Trindade, no bairro do Campo Limpo, em São Paulo. Ao centro, a jovem Isabelle Christina, de 17 anos, falou sobre a importância de uma oportunidade na vida das meninas da periferia. Victor Cruz contou como foi sua trajetória de faxineiro a programador na mesma empresa que apoiou o desenvolvimento de seu potencial. Ambos participaram da elaboração da iniciativa da unicef como experts do conselho consultivo
Imagem: Divulgação

A importância de ter uma oportunidade, a chance para acessar universos que fogem das estatísticas periféricas, pautaram todas as decisões do programa. E assim foi criada uma plataforma digital (1mio.com.br ) para auxiliar adolescentes e jovens na busca de informações sobre oportunidades e formação para o mundo do trabalho, incluindo buscas por regiões. Todas as vagas poderão ser acessadas no site e no aplicativo, que contam com monitoramento sobre o preenchimento efetivo de cada vaga pelas empresas que participam por meio de um acordo de adesão.

Outra novidade está na narrativa do programa. Toda a comunicação do projeto nas redes sociais está a cargo da empresa Gato Mídia, uma agência de comunicação e produtora digital que fica na favela da Maré, no Rio de Janeiro, formada por moradores da comunidade. É outra inovação que salta aos olhos. Ao contar as próprias histórias e ressaltar o que é importante ou não na divulgação, a periferia vai mostrar seu olhar acolhedor, ressaltar seus valores, os desafios e os microaspectos que só quem veio da quebrada conhece.

O lançamento da iniciativa, na última quarta-feira (29/10), foi outra grata surpresa. Realizado no quintalzão arejado da Agência Solano Trindade, co-working e espécie de quilombo de inovações periféricas em São Paulo, o evento contou como mestra de cerimônias Adriana Barbosa, criadora da Feira Preta, uma inspiração da juventude. Ela ressaltou a importância do trabalho decente para a periferia e a participação da jovem estudante Isabelle Christina, 17 anos, que falou sobre a necessidade de programas de inclusão nas empresas. (Assista, abaixo, a íntegra do lançamento com a participação de jovens, da representante do Unicef no Brasil Florence Bauer e patrocinadores)

"Não adianta querer promover diversidade sem oferecer inclusão", diz a garota, uma evidente liderança. "É preciso que a empresa estimule e tenha estratégias, planos de desenvolvimento, mentoria e apoio para integrar as pessoas permitindo que elas sejam quem são, com liberdade", explica a garota, criadora do projeto Meninas Negras, que promove vivências para estreitar relações entre jovens periféricas e empresas de tecnologia. "A inovação já vem da periferia. Há muitos talentos criativos! Com poucos recursos já usamos nossa criatividade para fazer do limão a limonada, isso é natural na nossa própria vida."

Resiliência, trabalho colaborativo e em equipe, por exemplo, são habilidades que as empresas procuram nas chamadas "soft skills", e que a periferia já traz consigo. "A gente desenvolve essas competências porque precisa. Se as empresas tiverem um olhar acolhedor sobre isso, vão entender a riqueza desse potencial. Habilidades técnicas, como fazer um power point, se aprende, mas há muito mais para aproveitar do que já carregamos", completa Isabelle, visionária.

Um exemplo de ganho do mercado de trabalho com a diversidade, cita a garota, está nos veículos autônomos, que não precisam de motorista. "Veja só, hoje eu tenho muito mais probabilidade de ser atropelada por um carro desses porque essa tecnologia não esta sendo testada em peles negras. Ter pessoas como eu é uma mega oportunidade para mudar a vida de toda a sociedade", pontua a Isabelle, que nasceu no Grajaú, no fundão do fundão da cidade, e em 2016, entre mais de 11 mil estudantes, conquistou uma das 22 duas bolsas de estudo de um das escolas mais respeitadas, o Colégio Bandeirantes. "Mas penso todo dia em como democratizar o ensino de qualidade para todos."

Isabelle trabalha como aprendiz da empresa multinacional de tecnologia Oracle, que criou a vaga especialmente para ela. "Eu já participava de atividades por lá e, aos 15 anos, quando percebi que precisaria ajudar em casa, porque é, sim, importante, pedi para a diretora do RH da empresa espalhar meu currículo. A surpresa foi essa oportunidade! Eu sei o quanto vale uma chance, sabe? Muda não só a vida de uma pessoa, mas de muitas, milhares, pode transformar o mundo todo."

*Em tempo: na semana que vem, aqui no blog Mulherias, confira as dicas de Isabelle Christina para as pessoas que buscam oportunidades e para empresas que querem diversidade em suas nas equipes. A hora é agora!