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Centro cultural da periferia sofre com ameaças de despejo

Atividades culturais no Espaço Cita  - Divulgação
Atividades culturais no Espaço Cita Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

16/10/2020 04h00

Com o samba foi parecido: transformar o batuque em crime foi o jeito que o racismo institucional brasileiro encontrou para tentar acabar com as manifestações culturais de pretos cantantes e dançantes. Antes disso, o funcionamento de terreiros era proibido pela Constituição de 1824. Só na era Vargas, em 1930, foram autorizados a funcionar, mas sob o olhar rigoroso da polícia também. E as instituições seguem em sua jornada de perseguições mesmo mudando a justificativa, o endereço ou formato da intimidação.

Na última semana, uma ameaça de despejo chegou pela prefeitura de São Paulo ao Espaço Cita (Cantinho de Integração de Todas as Artes), que há quase dez anos ocupa um colorido galpão público, antes imundo e abandonado, na praça do Campo Limpo, na periferia da zona sul de São Paulo. Reconhecido como Ponto de Cultura Estadual e Federal, o local é abrigo de dez coletivos que atuam em diferentes linguagens.

Tem Artes Cênicas (com o @Bando Trapos, a Cia Diversidança, Clã do Jabuti e @Via Vento), saraus, grupos de culturas tradicionais (Maracatu Ouro de Congo, Maracatu Baque Mulher SP e Candongueiros do Campo Limpo), de permacultura (Megê Design Sustentável e Núcleo de Permacultura do CITA) e de formação profissional (Coletivo C9 Iluminação). Todos esses coletivos, com muito orgulho, se entendem como iniciativas negras e periféricas, oriundas do movimento cultural que está mudando a cena artística nas quebradas.

Não por acaso, no quintal dos fundos do Espaço Cita, cresce vicejante um baobá, árvore-símbolo das raízes africanas daquele chão que, dizem os mais velhos, já abrigou uma senzala. A árvore foi plantada num ritual que contou com mais de 50 mestras e mestres da cultura popular, além de mães e pais de santo de todo o país. A festa suntuosa ocorreu em 2018, no chamado Festival Percurso, um dos maiores da periferia, que há cinco anos reúne mais de 10 mil pessoas na região (veja vídeo abaixo).

O Cita é parte dessa grandiosidade toda. Desde que surgiu, encaminhou à prefeitura o pedido de concessão de uso definitivo da área, primeiro passo do processo de formalização do local. Também regularizou contas de água, luz e cuidou de toda a infraestrutura necessária para abrigar os ensaios, oficinas e atividades culturais gratuitas.

Espécie de congregador jurídico de dezenas de outros coletivos da região, em 2014, se formalizou como uma instituição cultural com CNPJ, nota fiscal, contador, pagamento de impostos e todas as firulas da lei. Por isso, acaba por atuar como uma instituição que auxilia dezenas de outros coletivos artísticos de quebrada a ter papelada para participar de editais públicos e prestação de serviços diversos. Grandes eventos da região, como a Feira de Literatura da Zona Sul (Felizs), que anualmente reúne escritores periféricos de todo o país.

Entre os eventos mensais, há o sarau local em parceria com o coletivo Sarau da Ponte Pra Cá, que oferece comida de graça aos moradores de rua e frequentadores do evento e roda de jongo todo primeiro sábado na praça. Durante a pandemia, o local ainda se tornou ponto de distribuição de cestas básicas para as comunidades e o Cita ainda articula o projeto "Costurando Vidas", da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico da Prefeitura, de confecção de máscaras com 200 costureiras da região que fornecem o equipamento de proteção para agentes públicos como bombeiros, policiais ou profissionais de saúde.

Mas, mesmo diante de tudo isso, o Cita recebeu visita inesperada de dois policiais e uma fiscal da subprefeitura no último dia 7 de outubro. "Eles chegaram dizendo que receberam a denúncia de que moradores em situação de rua estavam no nosso centro cultural", conta a articuladora cultural Cléia Varges, artista do grupo do Maracatu Baque Mulher e Maracatu Ouro do Congo. "Só quando entraram no local, viram que a denúncia não procedia, nos informaram que a Secretaria da Saúde queria usar aquele espaço e que no dia seguinte receberíamos uma ordem de despejo para dali a 15 dias", completa.

E é essa a história que se repete, institucionalmente, não fossem as mais de 5.000 assinaturas do abaixo-assinado que atualmente segue em protesto. "Não se veem espaços culturais de ONGs destinadas ao ensino de balé sendo expulsos das comunidades, nem de ensino de violino, música clássica ou culturas europeias", lembra Cléia.

Em resposta ao blog Mulherias, a secretaria de comunicação da prefeitura de São Paulo enviou a nota:

"A Prefeitura de São Paulo informa que a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) já mantém no terreno, atualmente, o SAE DST Jardim Mistutani e o CAPS Infantojuvenil Campo Limpo, que prestam importantes serviços para a população local. Na mesma área, há a intenção de implantar o Centro de Testagem e Acolhimento (CTA) Parque Ipê, com recursos do Programa IST/AIDS, cujos trâmites licitatórios estão em andamento. Para a instalação do equipamento, será necessária reforma do imóvel, pois há diversos problemas e risco devido à presença de cupins e falta de manutenção nos últimos anos. A Subprefeitura de Campo Limpo esteve no local no último dia 7 e, constatado risco estrutural, foi lavrado um auto de interdição e de desocupação da área. O prazo para cumprimento é de dez dias. A Secretaria Municipal de Cultura reconhece a importância do trabalho do Espaço Cultural Cita, reconhecido pelo edital de Mapeamento e Credenciamento de Espaços Culturais, e se dispõe a auxiliar nas tratativas para a resolução do caso."