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OPINIÃO

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'Saí traumatizado da terapia': diz autor de livro contra 'cura gay'

O livro "Cura gay: não existe cura para o que não é doença" foi lançado há um ano, pela Editora Taverna  - Reprodução/Instagram
O livro 'Cura gay: não existe cura para o que não é doença' foi lançado há um ano, pela Editora Taverna Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista de Universa

19/06/2022 04h00

"Às vezes, a vida pessoal acaba sendo inspiração para o trabalho que será feito depois", expõe o psicólogo Jean Ícaro, de 31 anos, autor do livro 'Cura gay: não há cura para o que não é doença', lançado pela Editora Taverna.

Nascido em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, Jean teve o primeiro contato com a psicologia no final da adolescência, por volta dos 18 anos de idade. Na época, ele se sentia desconfortável por algumas questões familiares e também tinha dificuldade de aceitar sua própria orientação sexual.

"Fui a uma terapeuta que me indicaram e abri que eu me identificava como um homem gay. A terapeuta, por questões dela, pela formação dela, por falta de preparo técnico e ético, entendeu que a minha orientação sexual era a origem do meu sofrimento, era a explicação do porque eu estar deprimido", relata o psicólogo.

"Em vez de entender com mais profundidade essa questão, ela associou que o tipo de criação que eu tive, a maneira como me relacionei com meus pais - com minha mãe sendo mais próxima e o meu pai mais distante - era o motivo de eu ser gay. E aí, só tinha um jeito de a gente 'organizar' isso, e era 'redirecionando' a minha orientação sexual, que foi que ela acabou tentando fazer."

Durante os três anos de acompanhamento com a psicóloga, o escritor revela ter sido submetido a uma série de 'terapias de conversão'. Entre as atividades sugeridas a Jean, estava a 'aproximação e flerte com mulheres de forma mais viril', técnica conhecida como 'treinamento de habilidades heterossexuais', e também uma espécie de 'intensivão' em filmes pornôs héteros, uma outra técnica cujo nome é 'treino de recondicionamento masturbatório'.

"São coisas que, agora falando, podem parecer muito absurdas, mas elas têm toda uma dinâmica psicológica que é muito sutil. Os terapeutas chegam com argumentos muito nobres e tentam atingir os pacientes de maneira gentil para que não soem como ameaça, e pareçam genuinamente interessados em ajudar. Essa terapeuta me ajudou a resolver muitos conflitos que não tinham nenhuma relação com a minha orientação sexual, mas depois ela acabou indo nessa direção. Fiquei três anos na terapia e, em um certo momento, começou a me fazer muito mal. Percebi que o jeito que ela estava lidando comigo não era o jeito que psicólogos e psicólogas deveriam lidar, e aí acabei saindo dessa terapia. E saí traumatizado por isso."

Trauma virou inspiração para livro

O psicólogo e escritor gaúcho Jean Ícaro, de 31 anos  - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
O psicólogo e escritor gaúcho Jean Ícaro, de 31 anos
Imagem: Reprodução/Instagram

A experiência negativa na adolescência e o interesse pela psicologia fizeram com que Jean seguisse esse caminho profissional, com foco na temática LGBTQIA+.

"Na faculdade, vi que mais colegas tinham vivido isso. Algumas pessoas LGBTs relatavam que era muito difícil ir a alguns profissionais da psicologia e não ouvir algum comentário preconceituoso. Fui explorando esse tema durante o curso e, depois de me formar, quando tive a oportunidade de fazer mestrado, quis investigar se os terapeutas aqui no Brasil ainda tentam converter ou modificar a orientação sexual de uma pessoa."

Para sua pesquisa de mestrado, Jean investigou o trabalho e a opinião de 692 psicólogos e psicólogas de todo o Brasil através de um questionário que os profissionais responderam anonimamente, online. Os resultados da pesquisa foram publicados no livro 'Cura gay: não há cura para o que não é doença'.

"O livro é resultado tanto da pesquisa, quanto de outras questões, inclusive jurídicas, em relação à 'cura gay', que eu queria colocar. O livro não é só pra profissionais da psicologia, mas para pessoas que se interessam pelo tema. Ele é bem aberto, a linguagem é bem acessível".

Jean analisa que os terapeutas que submetem pacientes a terapias de conversão são influenciados por questões religiosas; morais, por serem mais conservadores; ou ainda porque não tiveram uma formação adequada e não se permitiram aprender sobre o tema.
"O que esses terapeutas todos que tentam converter têm em comum é acreditar que a homo, a bissexualidade ou uma pessoa LGBT não é naturalmente assim, que existe algo que influenciou no comportamento ou na criação, ou que existem conflitos psicológico que estimularam ou desviaram a pessoa do seu 'caminho natural', que era ser uma pessoa cisgênera e heterossexual", aponta o psicólogo.

"O grande equívoco dessas pessoas é acreditar que as experiências agradáveis ou desagradáveis da infância ou adolescência conduzem alguém a uma orientação sexual ou identidade de gênero, o que a gente sabe que é mentira, no sentido de evidências científicas. As pessoas, elas são naturalmente LGBTs porque assim como existe uma diversidade entre espécies de mamíferos, existe uma diversidade também entre seres humanos, e essa diversidade faz parte da vida, não é um desvio de nada".

É importante lembrar que, no Brasil, terapias de conversão são proibidas pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) desde 1999. Se denunciado, o terapeuta pode receber desde uma advertência do Conselho, até ter seu registro cassado e perder o direito de exercer a profissão.