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REPORTAGEM

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Primeiro homem trans das Forças Armadas luta por reconhecimento

Salles ingressou na Força Aérea aos 19 anos, em janeiro de 2009 - Reprodução/ Instagram
Salles ingressou na Força Aérea aos 19 anos, em janeiro de 2009 Imagem: Reprodução/ Instagram

Colunista de Universa

26/01/2022 04h00

Nas Forças Armadas há 13 anos, o sargento Marcos Caio Salles luta há sete meses pelo reconhecimento de sua identidade. Natural do Rio de Janeiro, o primeiro homem trans em exercício na Aeronáutica iniciou seu processo de transição de gênero em 2020. Pouco tempo depois, quando comunicou oficialmente sua transição, começou a ter alguns de seus direitos básicos negados.

Para militares cisgêneros, por exemplo, a corporação costuma custear cirurgias que as Forças Armadas não tenham capacitação técnica para realizar. Quando Salles precisou passar por seu primeiro procedimento cirúrgico, a mastectomia masculinizadora, para a retirada das glândulas mamárias, recebeu a primeira negativa.

A Aeronáutica alegou que essa seria uma cirurgia estética, o que vai na contramão do parecer da Agência Nacional de Saúde (Parecer Técnico nº 26/GEAS/GGRAS/DIPRO/2021) que determina que cirurgias transexualizadoras não são consideradas cirurgias estéticas. Salles arcou sozinho com os custos de sua mastectomia.

Em seguida, quando solicitou a colocação de seu nome social, a utilização do uniforme masculino e um alojamento separado, Salles foi deixado em uma espécie de limbo. Apesar das mudanças físicas e hormonais causadas pelo processo de transexualização, ele não teve nenhuma das suas requisições atendidas. Salles sequer foi respondido oficialmente.

Sete meses sem resposta

"É costume fazer requerimentos para oficializar algumas questões administrativas. No caso do Salles, ele requer a utilização do nome social nos cadastros internos, prontuários e identidade, bem como o uso de uniformes masculinos —até para se adequar à recente cirurgia de mastectomia que ele fez—, e a utilização de alojamento e banheiro adequados ao seu gênero masculino", explica a advogada que o representa, Bianca Figueira Santos.

A advogada lembra que a corporação demora, em média, dois meses para analisar as solicitações dos militares. Salles já aguarda há sete meses uma resposta oficial da Aeronáutica enquanto segue no alojamento feminino com aproximadamente 80 mulheres, precisa usar um banheiro individual improvisado sem iluminação e ventilação adequados, e não tem seu nome social respeitado.

Marcos - Reprodução/ Instagram - Reprodução/ Instagram
Marcos Caio Salles, primeiro homem trans das Forças Armadas, luta há sete meses pelo reconhecimento oficial de seu gênero na corporação
Imagem: Reprodução/ Instagram

"Quando ele fala com os responsáveis, respondem que as coisas estão sendo feitas aos poucos porque não tem nada oficialmente definido para, de fato, ter um espaço. A expectativa é que continuem em silêncio até serem demandados judicialmente. Eles não sabem como lidar com a situação, e agora eles não têm mais como reformar (aposentar), porque a transexualidade deixou de ser doença pela CID-11, que já está em vigor", expõe a advogada.

Em 2019 a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou da sua lista oficial de doenças a CID-11, o chamado "transtorno de identidade de gênero", que considerava como doença mental a situação de indivíduos que não se identificam com o gênero que lhes foi atribuído no nascimento.

Transfobia é crime

"Aliado a isso, tem também o fato de agora a transfobia ser considerada crime de racismo, reconhecido pelo STF em 2019. Então as Forças Armadas ficam agora sem saber o que fazer diante de casos como esse. Na verdade, o que fazer é o seguinte: acolher, receber, integrar. É isso que elas devem fazer, mas elas estão ainda cheias de dedos para proceder com essa situação, por isso o caso dele está demorando. Qualquer atitude, qualquer resposta que eles derem, ele pode demandar judicialmente", esclarece.

Ao deixar de ser uma solicitação interna para passar à esfera judicial, o caso de Salles pode abrir precedentes, jurisprudência, para casos similares. E isso pode representar uma conquista para outros militares trans.

'Deixadas para trás'

A própria Bianca é ex-militar. Oficial superior no posto de Capitã de Corveta, ela foi reformada em 2008 por ser uma mulher trans. Na época, a transexualidade era considerada uma "doença incapacitante" pelas Forças Armadas. Sua história, assim como as de outras seis militares que foram compulsoriamente reformadas por serem transexuais, inspiraram o livro "Deixadas para trás" (Metanoia Editora), escrito por Bianca, que aborda o dilema da transexualidade nas Forças Armadas Brasileiras e a forma como ela é vista e tratada pelos altos escalões hierárquicos.

O que diz a FAB

A colunista entrou em contato com a assessoria das Forças Armadas solicitando uma atualização sobre o caso do sargento Marcos Caio Salles e não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.