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Matheus Pichonelli

Coronavírus: como encarar 2ª onda sem acreditar nos papos furados da 1ª?

Especial novo normal - Reinaldo Canato/UOL
Especial novo normal Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Colunista do UOL

30/11/2020 04h00

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Atire o primeiro frasco de álcool em gel guardado pra limpar sacolinha de supermercado quem não se identificou com o que escreveu o Ícaro Prazeres no Twitter sobre aquela vibe dos primórdios da pandemia.

Sim, venderam pra gente aquela ideia de que dava pra trabalhar, estudar, dar conta de casa, fazer comida saudável, atividade física, ser mentalmente saudável e manter vida social e afetiva.

Digo mais: disseram também que sairíamos com os laços mais estreitos com os filhos, capazes de valorizar os pequenos gestos e momentos da vida, que era possível matar saudade por videoconferência, encontrar o universo numa casca de noz com dois quartos e ainda compartilhar receita de comida, diversão e arte na mesma tela. Ah, sim: antes que a ciência se manifestasse, muitos de nós acreditaram, no distante mês de março, no papo furado de Donald Trump de que a salvação estava a caminho e o caminho era a cloroquina.

Nove meses depois, em vez de nos reconectar com o que nos era mais precioso, seguimos contando mortos e com tempo de sobra pra acompanhar os desdobramentos de uma briga com muita saliva e pouca pólvora em duas frentes contra as duas maiores potências do planeta. Sim, o governo de Jair Bolsonaro, não contente com o morticínio do coronavírus em seu quintal, parece agora disposto a provocar uma hecatombe cutucando com vara curta a China e o novo governo dos EUA. Chegar ao Natal confinado já não é a preocupação. A meta é assar o chester antes que alguma bomba estoure e mande tudo para os ares.

Sim, a gente comeu esse reggae e agora a sensação de insuficiência veio como efeito-rebote. Saímos tão mais fortes e confiantes no novo normal que agora podemos nos preparar para a guerra. Onde falhamos? (Em 2018, pelo jeito, mas essa é outra história. Ou não).

Fato é que 99,9% de nós não conseguimos usar o tempo de confinamento para escrever um novo "Guerra e Paz". Não conseguimos sequer terminar aquele livro de cem páginas sobre como gente feliz não enche o saco. Não conseguimos nos concentrar em nada porque não conseguimos tirar os olhos das telas por onde observamos uma segunda onda de contaminação se formar antes de engolir a primeira que ainda não virou marola.

Justo agora que começávamos a retomar, aos poucos, alguma normalidade que imaginávamos intacta da velha rotina. Basta tomar alguns cuidados, eles disseram, antes de alguém enviar link de notícia falsa no grupo da família de WhatsApp contando que o primo do vizinho é cientista e garante que usar máscara é coisa de maricas, causa disfunção erétil e diminui a oxigenação do cérebro. E que liberdade de ir e vir é liberdade de usar a indumentária ou não e colocar todo mundo ao redor em risco se assim desejar.

Nas lojas que já voltamos a frequentar, a velha normalidade é um velho disco da Simone que agora ganha novo significado ao lembrar que então é Natal e o que você fez?

Sopa, respondo. Talvez a atividade que mais aprimorei na pandemia, que meu deu uma máscara e uma boca de fogão favoritos. Coisas da vida adulta.

O curso de inglês, a carteira de motorista, a pós —eu juro que queria, mas para colocar esse caminhão na estrada eu preciso de uma estrada com boa conexão, e a minha só faz concluir que o ódio às operadoras que cobram cada vez mais e entregam cada vez menos ainda unirá este país —sim, o que vai nos unir é o ódio às operadoras de internet, e não a vacina ou as orientações das autoridades sanitárias, hoje em pé de guerra promovida por grupos políticos incapazes de sentar à mesa, conversar e emitir um prognóstico minimamente transparente do que vem por aí. O saldo de ministros da Saúde demitidos no auge da primeira onda são o lembrete de que não, não sairemos mais unidos, nem fortalecidos, nem amadurecidos disso tudo.

Cada nova notícia sobre uma possível segunda onda vem agora acompanhada de um suspiro, como quem toma fôlego antes de ser tragado por uma montanha de lixo. Ao que parece, essa montanha virá com os mesmos apetrechos da onda anterior. Menos o otimismo.

Eu sinceramente não tenho ideia de como atravessar a nova turbulência sabendo que era balela aquela esperança de que tudo era só uma grande provação para a gente sair dessa como pessoas melhores.