Maria Ribeiro

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Opinião

Meu amigo me chamou de 'sem filtro' e fiquei angustiada. Isso é elogio?

Fui ouvir Silenciadas, série de áudio da minha parceira de Universa Cristina Fibe, para a Audible, em parceria com a revista Piauí. Os episódios, todos sobre mulheres vítimas de abuso sexual, por um lado me tiraram o sono, mas por outro despertaram uma imensa vontade de falar. Não para não ouvir.

Outro dia, um grande amigo, dos maiores escritores - e dos maiores corações - que eu conheço, comentou em uma mesa de bar, como quem não quer nada, sobre mulheres que considerava "sem filtro". Foi uma fala absolutamente natural. Sem qualquer intenção de parecer um julgamento de gênero ou de personalidade, inclusive porque, entre os exemplos que ele citou, eu estava incluída no time. E nossa relação, há anos, é de profundo carinho e de extrema cumplicidade.

E é aí, justamente nesse lugar, onde nossas mãos estão juntas e não separadas, que creio ser possível mudarmos o cenário que separa homens de mulheres e de toda a comunidade LGBTQIAPN+, ou que, muitas vezes, impede que o sexo masculino enxergue a distância que por séculos de uma construção social feita de forma vertical, e não horizontal, o isola ainda hoje das questões de todas as minorias, inclusive do sexo feminino. Mesmo sem consciência.

Porque algumas fichas caem aos poucos, e levam tempo . E não só para os homens. No dia em que meu amigo falou, em um jantar entre amigos, de quatro ou cinco mulheres que considerava sem filtro, achei graça por estar entre elas. No dia seguinte, acordei angustiada, e demorei a distinguir se estava nervosa com a estreia da minha peça, nesta semana, com a agenda de trabalho até o fim do ano que será extenuante, ou com o incômodo de ver o Diniz no Vasco, e não no Fluminense.

À noite, naquele momento sagrado pós "Vale Tudo", série, livro e silêncio, em que costumo me permitir um mínimo de introspecção, entendi de olhos fechados - ou bem fechados, como no título do filme do Kubrick - que havia sido o comentário do meu amigo o motivo do meu incômodo. Aquele carimbo superficial e genérico havia ficado na minha garganta e em todas as outras partes do meu corpo. A diferença, é que, ao invés de ficar chateada, modus operandi pré-psicanalise, ou pré-49, resolvi ligar para ele.

"Marcos, o que você quis dizer com ser sem filtro?" "Ah Maria, foi um elogio. Acho incrível gente que fala tudo, que se expõe, que não tem medo de dar a cara a tapa". "E quem é essa pessoa?", eu disse meio rindo, meio chorando. "Porque eu, no caso, não falo nem metade das coisas que passo". "Como assim? Me dá um exemplo?", ele disse.

"Você já ouviu a série Silenciadas? Sobre mulheres que foram assediadas, abusadas, ou sofreram algum tipo de preconceito e, mesmo com todas as provas dos crimes que sofreram, foram incentivadas a ficarem quietas? Então, se eu, que sou considerada 'corajosa, destemida e sem filtro', tenho, no mínimo, umas dez historias assim, sobre as quais nunca falei, imagina quem é mais reservado?"

"Nunca tinha pensado dessa forma", meu amigo disse. "Eu também não", respondi.

Foi uma conversa bonita. Desligamos mais amigos, e, mais importante que isso, desligamos diferentes. Exatamente como deve ser.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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