Nana Caymmi falava de música como quem fala de uma amiga íntima
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*Por Wagner Schwartz
Morreu Nana Caymmi: a pessoa. A pessoa Caymmi, eu não conhecia. E você? Hoje, fazemos o luto da imagem que tínhamos de Nana. Ligamos essa perda a outras, mais próximas. Para enlutar. É natural a confusão.
Quem não foi próximo à Nana convive com a artista em forma de disco, de shows, de entrevistas. Mas não confunda as Nanas. A figura pública se dirige ao público; a pessoa, a quem ela escolhe.
Eu conhecia a artista — quero dizer, a sua obra. Foi a cantora Daniela Borela quem me apresentou ao seu trabalho, no fim dos anos 1990, quando eu morava em Uberlândia, Minas Gerais.
Daniela Borela me ensinou a escutar Nana Caymmi como quem nos apresenta um romance lido muitas vezes — cheio de grifos, passagens sublinhadas, atenção às lacunas. Ela falava de sua música como quem fala de uma amiga íntima, de um autor que conhece de cor. Porque artistas, no fundo, se reconhecem pelo trabalho.
Foi importante para mim descobrir um território musical e cultural que, até então, eu evitava. Talvez por me achar superior às canções de amor, à vibração sôfrega de sua voz, ao sol que em excesso me fazia desejar o frio. E foi Daniela Borela quem me fez entender que Nana Caymmi era justamente a síntese da dor e do gozo, do calor e do frio — sem defesa nem pudor.
"Uma artista que não suaviza a contradição, porque sabe exatamente onde ela corta."
Nunca ninguém cantou Ponta de Areia como quem é, ao mesmo tempo, o narrador e a Maria-Fumaça. Sem saber, eu já procurava por Nana Caymmi no meu próprio trabalho e no que faço de mim mesmo. De lá até aqui, Nana me acompanha. Daniela, também.
Algumas de suas falas me emocionaram, sobretudo aquela em que disse não fazer discos, mas livros. "O disco é um livro." Uma obra encadernada em vinil, montada em sequência de textos, com personagens. Nana queria deixar algo para seus netos, bisnetos. Eu sou um de seus descendentes por escuta.
Nana Caymmi quando canta entorta meu corpo e o relaxa ao mesmo tempo. Se uma obra apenas entorta, talvez seja denúncia social. Se apenas relaxa, autoajuda. O trabalho de um artista perturba e consola sem resolver o conflito. "Dói porque é bom de fazer doer" — escreveu Raul Bopp sobre Pagu. E sobre Nana por extensão.
Há artistas que hoje perseguem o bem como destino. Buscam o equilíbrio. Escondem no corpo o que os torna exceção. Se purificam na língua do povo para evitar o cancelamento. Mas "até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso, nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro", soprou Clarice Lispector. Lembra?
Nana Caymmi não cortou nada de si nem do seu repertório. E pagou caro por isso. É essa recusa que faz sua arte continuar a doer -- e a durar.
*Hoje minha coluna foi tomada pelo texto lindo do meu amigo Wagner Schwartz
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