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Luciana Bugni

Pandemia, Natal e Netflix: os filmes que vão destruir seu algoritmo!

Um passado de presente: amontoado de clichês para tirar você da realidade. - Reprodução
Um passado de presente: amontoado de clichês para tirar você da realidade. Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

13/12/2020 04h00

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Basta o primeiro deslize. Você está ali de bobeira, controle remoto na mão, porque não, porque sim, pronto. Clicou na primeira comédia romântica natalina. A partir daí, entra num túnel sem volta até o dia 26 de dezembro. Todos os dias, o algoritmo trará uma nova história de amor sem pé nem cabeça, mas com guirlandas, viscos, árvores e bobagens em geral.

Esse ano, os filmes ainda têm um sabor de mais ficção ainda: as personagens andam num curioso mundo em que os abraços são legalizados, em que as pessoas circulam sem máscaras, em que todos em volta da mesma mesa falam e cospem e comem, tudo ao mesmo tempo. Ô tempo bom.

O roteiro é sempre o mesmo: uma mulher traída, largada ou durona e fechada para o amor encontra um cara bonito, legal, forte, gentil e disponível. Vai dando tudo certo progressivamente até os 40 minutos de filme, dá tudo errado por 30 minutos, dá tudo certo nos 20 minutos finais. Comédia romântica é a única coisa certa em 2020. Você senta ali na frente e sabe exatamente onde vai parar. Que alívio.

Essa manhã acordei assustada após ter sonhado que esquecia meu filho num elevador apertado em que todas as pessoas estavam sem máscara. Assim que abri os olhos, lembrei dos governantes brincando com o meu e o seu futuro em brigas de ego, vacina e poder. Lembrei do desrespeito comendo solto em festinhas infindáveis lá fora. E fui fazer o quê? Fui ver comédia romântica, claro. Quer coisa melhor do que uma garota que não acredita no amor em Ohio receber a visita de um cavaleiro inglês da idade média (Um presente para o passado)? É disso que a gente precisa! De viagem no tempo, de roteiros insanos (você levaria para sua casa um maluco que encontrou na rua de armadura que jura ter nascido há 700 anos?).

Essa história, aliás, é o crossover das comédias românticas idiotas. O medieval cavaleiro fica encantado com a TV dos tempos atuais, que ele chama de caixa mágica de onde sai alegria (e está errado?). Lá, ele assiste Feitiço de Natal, em que uma fotógrafa talentosa ganha um calendário mágico e fica vacilando sem perceber que o amigo gato e disponível está afim dela. Também assiste Resgate do Coração (você não se sente culpada de clicar em um título desse?). Nesse, Tina Fey é uma mulher que foi abandonada pelo marido dias antes de um safari chique pela África, mas ela encontra um piloto bonitão, irritante e disponível interessado em salvar elefantes. Pois é.

Outro dia, passei mais de uma hora acompanhando a saga de uma médica que se muda para o Alaska e se apaixona por faz-tudo gato que é o filho do Papai Noel. Na sequência, uma competente funcionária do governo americano é escalada para passar o Natal no Caribe com um piloto bonitão que não pensa em outra coisa se não ajudar os necessitados — de tal forma que está solteiro, claro, pois não tem tempo para o amor. Depois, vi dois amigos que foram criados juntos e trabalham como locutores de radio se apaixonarem na semana entre Natal e Ano Novo. Esse roteiro absurdo me deu raiva até em mim, que sou bem sem critério para esse tipo de história. Tudo tem limite.

É um tempo perdido mesmo. Esse tipo de filme só fortalece crenças antigas de que é impossível ser feliz sozinho. São teorias antigas de que as mulheres precisam de um homem para se sentirem realizadas. Neles, todos são magros, todos são lindos, todos são privilegiados. É assim o mundo? Não é. Mas numa época em que até o noticiário é todo dia sobre nós mesmos, é gostoso sair um pouquinho da realidade, sim.

Tem jornalista que vai entrevistar um príncipe bonitão e disponível bem no Natal (O Príncipe do Natal), tem músico frustrado alemão que volta para a casa dos pais e encontra a ex namorando o próprio irmão (Um Natal Nada Normal). Tem moça norueguesa que finge ter um namorado para a família parar de irritá-la (Namorado de Natal). Tem até série adolescente de romance platônico passada em Nova Iorque, no melhor estilo clássicos natalinos (Dash and Lilly). Tem para todo mundo.

É claro que é possível ser feliz sozinho. O mundo está cheio de comédia romântica besta para ocupar seu algoritmo e te fazer companhia até o ano que vem. Mas pense bem antes de dar o primeiro play. O algoritmo vai te abduzir para o universo dos filmes bobinhos eternamente. Não que seja um mau negócio ser abduzida para qualquer lugar que não seja o Brasil de 2020.

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