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Isabela Del Monde

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Jornalista processada por expor abuso ganha ação: Judiciário fez justiça

Colunista do UOL

02/06/2022 04h00

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Este texto foi escrito em parceria com as advogadas Tainã Góis e Maira Pinheiro.

Enquanto advogadas feministas, comprometidas com a garantia do acesso à Justiça e com a transformação de um direito punitivista em um direito acolhedor, lutamos todos os dias para mudar o Judiciário e impedir que ele seja instrumentalizado por agressores.

E, às vezes, ganhamos.

Foi o que aconteceu no caso da jornalista Amanda Audi. Ela fez um boletim de ocorrência registrando uma violência sexual da qual alegou ser vítima em outubro de 2019. A investigação, infelizmente, foi superficial, e o resultado final foi o arquivamento do inquérito policial —o acusado não foi absolvido, mas sequer foi investigado.

Um ano depois, Amanda usou suas redes sociais para expor o que tinha acontecido com ela, especial foco no baixo grau de engajamento da polícia na investigação de sua ocorrência.

O homem denunciado por Amanda não tolerou seu pronunciamento e a processou exigindo, em primeiro lugar, que ela não pudesse mais falar de do caso em suas redes sociais. Tendo conseguido rapidamente uma decisão liminar que calou a vítima, ele próprio passou a fazer postagens e dar entrevistas na imprensa sobre o caso.

Não satisfeito, ele a processou por danos morais na esfera cível e, na esfera criminal, pelos crimes de injúria, difamação e calúnia. Além disso, processou mais de dez pessoas, entre jornalistas e usuários das redes sociais, simplesmente por terem compartilhado os relatos feitos por Amanda. Os valores que ele pretendia obter junto ao judiciário ultrapassavam os seis dígitos.

Em maio de 2022, após dois anos de processo, o caso de Amanda teve um desfecho pouco comum.

O Judiciário entendeu que ela não deveria ser condenada pela conduta de falar publicamente sobre a situação que viveu.

O juiz do processo criminal entendeu que o autor do processo não conseguiu provar que os fatos narrados por Amanda eram falsos , assim, não demonstrou que a intenção da Amanda foi atacar a honra e a imagem dele. Longe de ter como central o intuito de difamar, reconheceu o magistrado, ela não cometeu crime porque estava apenas contando a própria história.

No processo cível, a decisão seguiu a mesma lógica. Aqui, também, o Judiciário reconheceu que as manifestações de Amanda tinham como intuito fazer críticas à forma como sua denúncia foi tratada, e não buscar qualquer forma de retaliação contra o agressor.

O raciocínio que fundamentou essa decisão é uma grande vitória. Nos garante que, se há violência (ou a probabilidade real de a violência ter acontecido), é lícito que a vítima fale sobre o fato publicamente sem que isso seja lido a partir do ponto de vista do agressor.

Como a Universa já mostrou em algumas matérias, bem como já trazido em textos desta coluna, o assédio judicial tem sido uma estratégia de silenciamento de mulheres que se pronunciam sobre as violências que sofreram. A prática consiste, essencialmente, em um uso abusivo do judiciário para pressionar as denunciantes, econômica e psicologicamente.

Após relatarem suas histórias, muitas mulheres têm sido afogadas em processos judiciais que visam proibi-las de falar publicamente sobre o que viveram, bem como puni-las por crimes como difamação e calúnia e obrigá-las a pagar indenizações por danos morais àqueles que apontam como agressores.

É evidente que uma acusação precisa ser investigada e que o direito à defesa precisa ser defendido e respeitado.

Contudo, não podemos tratar o Judiciário e o processo judicial como instrumentos neutros e sem contradições de gênero.

O que uma vítima pode fazer se os órgãos competentes pela investigação não realizam seu trabalho de acordo com a lei e com as melhores práticas de enfrentamento à violência de gênero?

Engana-se quem acredita que as mulheres vítimas contam suas histórias nas redes sociais como primeiro recurso. Antes disso, elas costumam buscar ajuda nas delegacias e em serviços de saúde. Entretanto, em grande parte dos casos, o Estado falha com elas ao desacreditar sistematicamente sua palavra, ao deixar de investigar, ao se recusar a ouvir testemunhas ou reproduzir formas de opressão e silenciamento em audiências, oitivas e decisões.

A vítima deve aceitar calada que sua dor não vai ser reparada pelo Estado? E mais: como podemos promover transformações concretas se a vítima não tem o direito de falar publicamente sobre a violência e a ineficiência do sistema de Justiça?

Há quem defenda que a obrigação da vítima é silenciar, uma vez que suas falas públicas podem prejudicar a vida pessoal e profissional do homem apontado como seu agressor.

Entretanto, essa posição é mais um reflexo de uma sociedade que se empatiza muito mais com a reputação masculina e que fecha os olhos para todos os prejuízos que uma vítima enfrenta após ser alvo de uma violência. Por que apenas os danos à vida do acusado são levados em consideração?