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Isabela Del Monde

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Stalking agora é crime, mas só punição à perseguição não basta

Senado aprova projeto de lei que criminaliza o "stalking" - Getty Images
Senado aprova projeto de lei que criminaliza o 'stalking' Imagem: Getty Images

Colunista de Universa

02/04/2021 04h00

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Na quarta-feira (31), foi sancionado um novo artigo do Código Penal que criou o crime de perseguição, isto é, perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade. A pena é aumentada quando o crime acontece contra mulher por razões da condição de sexo feminino.

É sempre gratificante quando a legislação do país reconhece condutas historicamente enfrentadas pelas mulheres, como, por exemplo, a perseguição de ex-companheiros que simplesmente não conseguem respeitar o desejo de término de uma mulher. Foi o mesmo que sentimos com a criminalização da LGBTfobia.

Esse novo crime também abre a perspectiva de responsabilizar pessoas que promovem a perseguição de outras, por exemplos, nas redes sociais, como vimos acontecer com alguns influenciadores e pessoas públicas. Entretanto, sou crítica à resposta exclusivamente penal.

Primeiro, porque o sistema penal não é justo, isto é, pune uns e não pune outros. De acordo com o Anuário da Segurança Pública de 2020, dois a cada três presos brasileiros são negros, servindo, portanto, o sistema prisional como uma ferramenta para segregar pessoas negras e não como instrumento de solução aos nossos problemas sociais.

Segundo, porque se prender resolvesse alguma coisa, o Brasil estaria no topo do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) mundial, já que temos a terceira maior população carcerária do mundo. Não é onde estamos.

E por fim, a resposta exclusivamente penal é populista na medida em que passa uma falsa sensação de maior segurança para a população quando, na verdade, tem sido utilizada como justificativa para que autoridades públicas se desobriguem de desenvolver políticas públicas para lidar de frente com a raiz do problema.

Devemos ter sempre em mente que a Lei Maria da Penha, nosso marco da proteção das mulheres no Brasil, não é uma lei penal; o primeiro crime nessa lei foi incluído apenas em 2018, 12 anos após a implementação da lei, e houve críticas à época preocupadas com a perda do espírito da lei.

O que causa a perseguição das mulheres, seja por ex, por atual ou por homens que sequer sabemos que existem, é o machismo que forjou a lógica de propriedade sob a qual os homens nos enxergam.

Esse senso de posse é tão forte assim porque caminha junto com a percepção de que mulheres não são tão pessoas assim e que nossa existência tem como objetivo agradar e satisfazer homens.

A ideia de que um homem pode fazer tudo o que ele quiser para estar com a mulher que ele deseja é que deve ser desmantelada e substituída pela ideia de que tanto homens como mulheres são pessoas autônomas que podem decidir o que querem, quando querem e com quem querem sem precisar de qualquer justificativa para além da sua própria vontade.

A criação de um crime deveria ser a última etapa do processo coletivo de transformação cultural. Deveríamos estar pensando, antes, em alterações dos currículos escolares com a inclusão de disciplinas sobre equidade de gênero, sempre com uma perspectiva interseccional; na realização de diagnósticos, pelo Estado brasileiro, a respeito do perfil da vítima e do agressor desse tipo de conduta; no desenvolvimento de políticas públicas, com adequada dotação orçamentária, que dialoguem com as necessidades das vítimas; nas causas que levaram os agressores a essa prática; e na incidência junto à indústria cultural de modo a formar seus profissionais para que não reforcem ou romantizem a perseguição e assim por diante.

Agora é o momento de usarmos a entrada dessa conduta para a legislação brasileira para jogarmos luz na questão e propormos um debate público que acolha, sem medo, a complexidade do assunto e que fuja de respostas simples e esvaziadas de eficiência.

Afinal, queremos maior segurança e qualidade de vida para todas e todos ou queremos vingança contra alguns agressores e o nó na garganta que a impunidade de tantos outros causa?