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Isabela Del Monde

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Carla e Arthur do BBB: Não é não também entre casais?

BBB 21: Carla Diaz ouve declaração de Arthur - Reprodução/ Globoplay
BBB 21: Carla Diaz ouve declaração de Arthur Imagem: Reprodução/ Globoplay

Colunista de Universa

23/03/2021 04h00

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"No Brasil, homens aprendem a amar muitas coisas e as mulheres aprendem a amar os homens" - Valeska Zanello, autora do livro "Saúde Mental, Gênero e Dispositivos"

Como uma brasileira de espírito festivo que não vê uma aglomeração desde março de 2020, meu entretenimento de sábado à noite tem sido acompanhar as festas do BBB 21. E, na do último sábado, vi, ao vivo e sem cortes de edição, cenas entre Arthur e Carla que me causaram profundo desconforto.

Corri para o Twitter para ver a repercussão e encontrar acolhimento à minha indignação e encontrei, no geral, a seguinte ideia: "ele é um homem com atitudes machistas, mas ela é uma adulta. O golpe está aí, cai quem quer". Mas será que é bem assim mesmo?

Eu acredito que não. E acredito que alimentar essa ideia vai na contramão do esforço de conscientizar a todas e todos que violência psicológica é também violência doméstica e desconsidera que as mulheres brasileiras são ensinadas, desde crianças, que seu valor como ser humana está condicionado à validação masculina, a ser escolhida como namorada ou esposa de alguém.

BBB 21: Carla Diaz já chorou várias vezes por ser ignorada por Arthur - Reprodução/Globoplay - Reprodução/Globoplay
BBB 21: Carla Diaz já chorou várias vezes por ser ignorada por Arthur
Imagem: Reprodução/Globoplay

Violência psicológica contra a mulher, de acordo com a Lei Maria da Penha, é qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, insulto, chantagem, entre outros.

E esse tipo de violência costuma ser o primeiro dentro do ciclo de violência doméstica que se define em lua de mel seguida de tensão seguida de explosão seguida de lua de mel e assim repetidamente. É a violência psicológica que cria terreno fértil para que outras violências, como má conduta sexual do homem contra a mulher com a qual se relaciona, possam ocorrer.

Arthur, desde que conseguiu a atenção afetiva de Carla, portanto, desde que atingiu seu objetivo de conquista guiada pelo senso de posse e objetificação, passou a destratá-la. Não tem qualquer pudor em chamá-la de chata, em mandá-la calar a boca, em combinar com outra participante, sem a ciência de Carla, de conhecer suas amigas quando o programa acabar, em constrangê-la por manter relações autônomas com participantes que ele não gosta e em isolá-la e apenas se dirigir a ela quando ele quer.

Porém, quando se percebe sem seu principal aliado do jogo e, por isso, sem ferramental para elaborar estratégias e tomar decisões com a própria cabeça, com riscos de uma indicação ao paredão e percebendo que Carla busca se fortalecer e descentralizá-lo de sua existência, Arthur inaugura uma nova fase de lua de mel: passa a dizer para a casa toda e, por último para Carla, que está apaixonado.

Comportamento do crossfiteiro Arthur com a atriz Carla Diaz na festa do BBB foi criticado - Reprodução/Globoplay - Reprodução/Globoplay
Comportamento do crossfiteiro Arthur com a atriz Carla Diaz na festa do BBB foi criticado
Imagem: Reprodução/Globoplay

Diante de tudo isso, posso imaginar que a grande questão que circunda a cabeça de Carla é: como alguém que diz estar apaixonado por mim, me trata dessa forma?

E é essa a questão que resume os danos da violência psicológica, pois à mulher são apresentadas duas condutas diametralmente opostas, isto é, às vezes amor e às vezes ódio, e ela simplesmente não sabe no que acreditar. E claro, quando há paixão no meio, sabemos muito bem que nossa mente guia todos os nossos olhares para acreditarmos nas falas e atitudes que demonstram amor; tratamos as condutas misóginas como fatos isolados, erros que qualquer pessoa pode cometer.

De acordo com a pesquisadora Valeska Zanello, "a forma de amar ensinada às brasileiras nos deixa muito vulneráveis" às violências, pois, como aprendemos que nosso valor subjetivo só será alcançado quando estivermos dentro de uma relação heterossexual estamos muito, mais muito propensas a nos envolvermos com homens nada admiráveis simplesmente para sermos deixadas em paz quanto a cobranças de nosso desempenho amoroso e para sentirmos que estamos completas e que somos importantes no que realizamos em nosso dia a dia.

Carla, mesmo sendo uma mulher adulta e coberta de privilégios, foi ensinada a se subjetivar a partir do olhar de um homem que a escolhe. Quando ela começa a se posicionar expurgando-o do lugar central, ele volta a escolhê-la e ela, novamente, cai nas armadilhas tanto da violência psicológica como da forma de amar patriarcal que foi martelada em gerações de mulheres brasileiras.

E essas armadilhas significam, na verdade, riscos maiores, pois o homem, que se subjetiva a partir do domínio e do controle, ao notar que a mulher parece ter iniciado um processo de emancipação, se aproxima com doçura e, em seguida, retoma atitudes que seguem uma escala, ficando cada vez mais violentas. Por isso que as ativistas feministas do campo do direito afirmam que o feminicídio é uma morte evitável, porque ela é fruto dessa escalada que pode, com os devidos recursos coletivos e individuais, ser interrompida.

"O golpe está aí e só não cai quem faz muito trabalho psíquico"

No caso de Carla e Arthur, a escalada a que assistimos na madrugada de domingo foram de más condutas sexuais por parte dele. Ela disse inúmeras vezes para ele parar de tentar beijá-la, que ela não queria, que estava brava e insegura e ele não hesitou, em momento algum, em forçar o contato físico sexual. Várias vezes ela ficou com receio de sua calcinha estar aparecendo para câmeras, e ele tratou essa preocupação com desdém.

Ele, literalmente, a beijava para não precisar ouvi-la e se responsabilizar por tê-la tratado muito mal. E mesmo nesse contexto de reaproximação, ele novamente se referiu a ela com palavras depreciativas e com raiva.

É preciso frisar, mais uma vez, que o consentimento sexual é revogado integralmente a partir do primeiro não, pedido de interrupção ou esquiva corporal. Continuar qualquer ato depois disso ou insistir ao ponto de a outra pessoa ceder apenas para interromper a insistência, é uma violação da liberdade e dignidade sexual; é imoral, antiético e, muitas vezes, um crime. Não importa se uma mulher beijou um homem antes ou depois da má conduta sexual, importa apenas que quando ela mostrou que não queria ele insistiu.

Não esqueçamos que a Lei Maria da Penha também prevê que a violência sexual é um tipo de violência doméstica. Por isso, leitora, saiba: seu namorado e seu marido podem, sim, ser seu agressor sexual se você disse não, ainda que com o seu corpo, e ele forçou a barra.

Por conta tudo que escrevi aqui, acredito que seja extremamente injusto e leviano reduzir a situação de Carla, uma mulher que se curou de um câncer em 2020 e, por isso, se encontra ainda mais vulnerável, a uma escolha que ela pode, num passe de mágica, abdicar sem custos, danos e riscos. Subverter essa lógica colonizadora de amar é tarefa coletiva, que exige profunda transformação cultural e não podemos cair na cilada de jogar toda essa carga nos colos de uma mulher, que mesmo adulta, não experimenta a liberdade de existir em plenitude.

O golpe está aí e só não cai - ou consegue sair mais rápido - quem faz muito trabalho psíquico em terapia e psicanálise e está politica e afetivamente organizada em grupos de mulheres. Quantas são essas mulheres hoje no Brasil?