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Prática esportiva na era dos gadgets: saúde ou pressão por performance?

Tenho uma boa e uma má notícia. A boa: nunca se correu, pedalou ou malhou tanto. A má: nunca se correu, pedalou ou malhou tanto. Desculpa a pegadinha, mas é que a ideia desta coluna é justamente entender esse boom dos esportes num mundo que é cada vez mais tecnológico e "planilhado" - pra usar uma palavra da área.

Esportista agora tem métricas para tudo. Para o VO² máximo, zonas de frequência cardíaca, tabelinhas de corrida - e gadgets e mais gadgets, apps e mais apps para controlar cada passo. O controle é bem-vindo, claro, pode até salvar vidas. Mas quando checar o smartwatch (ou smart ring) começa a valer mais que sentir o corpo... tem excesso à vista.

A subida dos exercícios físicos chegou com a pandemia - um dos poucos benefícios que ela trouxe, afinal. A sala de estar virou academia, longevidade entrou na pauta e os praticantes de atividades físicas no Brasil cresceram cerca de 30% desde então. Por aqui, 53% da população com 16 anos ou mais incluem atividades físicas na rotina, em média quatro vezes por semana. A taxa é mais alta nas classes A/B (66%) e cai para 44% nas classes D/E, mostrando que o tempo livre para cuidar de si ainda é um luxo.

Outro ponto de atenção: a prática esportiva tem acompanhado aquele comportamento humano que é o n° 1 dos nossos tempos: o consumo desenfreado. 67% dos brasileiros conectados compraram algum produto relacionado à prática esportiva no segundo semestre de 2024. É produto pra nutrição esportiva (alô proteína, creatina), relógio tecnológico, legging de alta performance e até garrafinha que monitora o consumo de água.

Mas parece que o maior consumo, mesmo, é nas redes sociais, onde 65% dos corredores acompanham conteúdos motivacionais e são incitados a comprar, comprar e comprar. Collabs impensáveis surgem, como a da Nike com a maquiadora britânica Isamaya Ffrench, e o esporte cruza a fronteira do luxo na coleção Haute Joaillerie Sport, da Chanel.

Os clubes de corrida não param de crescer e, segundo dizem, ajudam a manter a regularidade. Além de virarem base de apoio, incentivo e, às vezes, flerte: entre os 135 milhões de usuários do aplicativo Strava, por exemplo, quase 1 em cada 5 jovens da Gen Z já saiu com alguém conhecido via exercício.

Só que a economia da performance pode ter efeitos colaterais. Médicos alertam para overtraining (treinar sem recuperação adequada, elevação de cortisol, risco de lesão) e para a vigorexia (dismorfia com dietas rígidas e dependência da aparência). Não por acaso, segundo o estudo Mente Atleta da Universidade Federal do Ceará (UFC), 68% dos esportistas brasileiros amadores convivem com estresse crônico na rotina de treino e, entre corredores de rua, um em cada três já mostrou sinais de burnout. A Gen Z assume foco maior na aparência e diz que as redes agravam a ansiedade com imagem (conforme McKinsey & Company). Saldo: saúde, sim; pressão por performance, também.

Correr sem metas, pedalar sem Strava, treinar sem postar, de vez em quando, podem fazer bem quando estamos levando a vida a sério demais. Relógios e anéis medidores e aplicativos são incríveis para orientar treino e evitar erros. Gadgets, roupas e acessórios certos podem até deixar tudo mais divertido. Mas se a última década nos ensinou que exercício é fundamental pra saúde, a próxima talvez possa deixar claro que pra ele funcionar, é preciso justamente desacelerar.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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