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Fabi Gomes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Vou te marcar, sua vaca, tatuar meu nome na tua cara'

Marcar o rosto da mulher não deixa dúvidas sobre o desejo de posse - Getty Images/iStockphoto
Marcar o rosto da mulher não deixa dúvidas sobre o desejo de posse Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

24/05/2022 04h00

A notícia de que um jovem de 20 anos, inconformado com o fim do relacionamento, sequestrou e tatuou o próprio nome no rosto da ex-namorada, chamou atenção no noticiário do último fim de semana.

Destemido, antes do ato, o cabra ainda enviou ameaças e um aviso à mãe da menina: "Nada vai mudar o que vou fazer". Mais do que olhar para o caso subjetivo, afinal, a gente não têm condições de fazer nenhuma análise detalhada sem saber os meandros da relação e das dinâmicas individuais (seriam apenas palpites), podemos dar uma olhadinha macro, sociocultural.

Que tal jogar luz sobre a tranquilidade com a qual um homem decide o que vai ou não fazer com o corpo de uma mulher? Disso podemos falar objetivamente. Segundo dados do Fórum de Segurança Pública, no ano de 2021, em média, uma mulher foi vítima de feminicídio (homicídio motivado pelo gênero / foi morta por ser mulher) cada sete horas no Brasil. Me ocorre a questão: Quando se decide matar alguém? Existe um trajeto da violência? Qual a distância entre dar pitaco no que ela veste, interferir nas suas relações de amizade, dar um chacoalhão nos braços, não se importar se ela tá ou não a fim de transar e mandar para dentro (sem consentimento), e desferir facadas mortais?

Tatuar o nome no rosto. Não poderia ser mais explícito. O recado tá claro. Assim como donos de animais fazem com seus rebanhos para marcar a posse, marcar o rosto da mulher não deixa dúvidas sobre o desejo (ou a crença/certeza) de posse. "É minha". A decisão sobre o término, seja da relação ou da vida dela, é minha. O corpo dessa mulher me pertence e vou deixar isso claro a todos.

Há a crença da disposição e da posse do corpo e mente da mulher. Como me pertence, faço dele o que bem entender.

O Instituto Maria da Penha enumera os diferentes tipos de agressão às quais podemos ser expostas. Se inteirar delas é de utilidade pública. Recomendo fortemente a leitura atenta da lista completa. Aqui, gostaria de pinçar os mais "sutis". Aqueles que, muitas vezes, passam despercebidos ou podem ser lidos até como algo fofo. "Ah, ele gosta tanto de mim, tá 'só' demonstrando ciúmes...".

Não raro estamos emocionalmente tão vulneráveis e carentes (tudo muito bem engendrado e com a proporcional tentativa de manutenção desse estado), que nos sujeitamos a migalhas. À menor demonstração de carinho e cuidado, passamos procuração de posse de nossos palpitantes corações e de toda estrutura que esses coitados suportam. Cuidado. Muito cuidado! Vamos a algumas das tipificações que podem passar batidas, mas, no entanto, potencialmente são a primeira pedra na pavimentação de uma estrada fatal. Pode parecer óbvio, mas é sempre bom listar e refletir.

Das violências físicas: atirar objetos, sacudir e apertar os braços, tapas. Das violências psicológicas, achei bom listar quase todas: constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento (proibir de estudar e viajar ou de falar com amigos e parentes), vigilância constante, ridicularização, tirar a liberdade de crença, distorcer e omitir fatos para deixar a mulher em dúvida sobre a sua memória e sanidade (gaslighting). Violência sexual: obrigar a mulher a fazer atos sexuais que causam desconforto ou repulsa, impedir o uso de métodos contraceptivos ou forçar a mulher a abortar, limitar ou anular o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher.

Violência patrimonial: controlar o dinheiro, deixar de pagar pensão alimentícia, destruição de documentos pessoais, furto, extorsão ou dano, estelionato, privar de bens, valores ou recursos econômicos, causar danos propositais a objetos da mulher ou dos quais ela goste.

Violência moral: acusar a mulher de traição, emitir juízos morais sobre a conduta, fazer críticas mentirosas, expor a vida íntima, rebaixar a mulher por meio de xingamentos que incidem sobre a sua índole, desvalorizar a vítima pelo seu modo de se vestir.

Atenção, meninas. Muita atenção! A cilada está por toda parte. Só marcando e parando desde as mais sutis agressões, seremos capazes de pôr fim a essa naturalização da violência contra mulher. E se te chamarem de mimizenta ou algo semelhante, ponha o dedo em riste e diga: "Not today, Satan!"

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