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Fabi Gomes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Selfie eterna de um confinamento sem descanso

Anitta mostra a cara real, sem maquiagem, acordando, ou indo dormir, em suas redes sociais - Reprodução/Instagram
Anitta mostra a cara real, sem maquiagem, acordando, ou indo dormir, em suas redes sociais Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista de Universa

05/04/2021 04h00

Nunca, em tempo algum, fomos obrigados a olhar tanto para nossas próprias caras.

Esse encontro permanente com nós mesmos no espelho, na tela do celular e nas intermináveis reuniões por meio de telas, nos obriga a essa auto-observação constante. Auto-observação da imagem, que fique claro. Aparentemente, muita gente tem evitado de modo ferrenho o encontro mais íntimo consigo mesmo. Olhar para fora já demanda trabalho. Olhar para dentro, então, pode doer tanto, que muita gente prefere adiar esse momento.

Nesse encontro diário com sua própria cara, é claro, crescem os interesses em autocuidado, automaquiagem e em como aprender a dar conta, cada um por si, da própria beleza.

Cursos de automaquiagem e vídeos de faça você mesmo, ensinando coloração e até elementos mais técnicos como cortes de cabelo, vivem seu momento de glória. Nas lojas de roupas, aumentam as vendas de "parte de cima", enquanto caem as de "parte de baixo". Temos vivido nessa eterna 3x4. Quando muito, rola um plano médio. Mas, em geral, é nossa carona ali, em primeiríssimo plano. Nos tornamos seres da cintura para cima.

Muita gente tem falado e explorado os desdobramentos sobre o fato de passarmos tanto tempo olhando para nossas próprias caras. Imagina o cansaço que isso causa? Esse olhar excessivo e constante acaba por gerar distorções e resulta em combustível para potenciais neuroses. Um cabelo fora do lugar, uma olheira mais aparente. Se a gente não tivesse tanto tempo para se olhar e se analisar, talvez essas coisas nem nos incomodariam.

Lembram como eram as reuniões presenciais? Em primeiro lugar, você não precisa ficar se encarando. Tem sempre o outro, o interlocutor, para mirar. Com sorte, tem também coleguinhas parceiros para compartilhar impressões em trocas de olhares marotas.

Taís Araújo posa sem maquiagem - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Taís Araújo posa sem maquiagem
Imagem: Reprodução/Instagram

No universo digital, essa cumplicidade é perdida. Afinal, você está sempre olhando para tela, tipo um zumbizão de olhar distante. No máximo, as alfinetadas com os amiguinhos migram para o Whatsapp, acionado discretamente durante a reunião. Na melhor das hipóteses, numa ligação de duas pessoas, você pode passar a impressão de que está olhando para a pessoa, caso olhe diretamente para a câmera. Mas aí você estará olhando para a câmera, um orifício escuro no seu device, e não para um par de olhos.

No encontro presencial, como há o espaço físico e "as coisas", você entra ali como mais um elemento. Se não estiver conduzindo a reunião, pode até dar uma brisada, rabiscar seu caderno de notas ou dar uma olhadinha num site aleatório (bem, às vezes até os que conduzem se dão ao luxo da brisa). Não é que a gente possa exercitar plenamente a atenção flutuante (emprestando uma expressão psicanalítica) numa reunião presencial, mas há uma espécie de frouxidão permitida. E há o entorno. Nas reuniões longas, se pá, você vai ao banheiro dar uma espairecida. Levanta, pega um café, um pão de queijo.

Agora nas teleconferências parece que tem uma tensão permanente. E, sim, tua cara sempre ali. Você sempre olhando para tua cara e sem saber quem mais naquele quadrado também está te encarando em detalhes. Não tem objetos ou dimensões para olhar, para estar. Lembra um pouco o cenário daquela musiquinha: "Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada...". Só que, ao invés do nada, você se depara com a tua cara (o tempo todo) e com quadradinhos com outras caras digitalizadas em fundo branco, borradas, interrompidas.

"Ah, Fabi, mas dá para fechar a câmera, né?" Hmm... mas fechar a câmera é considerado ato pouco simpático e não necessariamente bem-vindo no mundo adulto (especialmente o corporativo).

Crianças e adolescentes até entendo fecharem a câmera. E com razão, já que a maior parte dos casos de bullying acontecem nessas fases da vida. Imagina alguém fazer um print da tela no momento que você tá com uma expressão engraçada ou que não lhe agregue valor estético? Agora, transporte isso para a vida adolescente. Sem chance.

O fechar a câmera também vem acompanhado de consequências mais práticas, claro. Perde-se esse contato visual, ainda que torto, incômodo e bizarrão, e a atenção fica ainda mais difusa. Ou seja, não tem para onde correr. Abrindo câmera, a fatura é alta, fechando a câmera, também.

P.S.: Ah, sim, nesse texto estou falando apenas dessa espécie de mundo encantando, onde todos têm acesso à internet e podem fazer seu confinamento no conforto das suas pantufas e até escondendo um vinhozinho na xícara de café para espairecer.

Nessa realidade, encarar-se indefinidamente se torna um problema, afetando até esferas psicológicas. Mas é sempre bom lembrar que tem um mundo de gente enfrentando esse momento com uma perspectiva muito diferente, tendo que lidar com medos e outros desafios, brutalmente concretos. Não tô fazendo uma competição de sofrimentos, não, nem desmerecendo um em detrimento de outro. Mas tem gente sem ter comida no prato e dando a cara e a vida para bater diariamente.

É, sem dúvidas, um momento muito desafiador, no qual toda a civilização está doente. E isso abre espaço para todo tipo de reflexão. O sofrimento está presente em todas as partes, em todos os corpos. Mais do que nunca, precisamos acolher e ser solidários. Ironicamente, isso acontece justamente quando somos movidos para longe um do outro. Tempos brutos.