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Fabi Gomes

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

BBB: quem ganha quando pautas identitárias viram Fla-flu?

Karol Conka, Bill, Juliette e Lucas Penteado no quarto Cordel do BBB 21 - Reprodução/TV Globo
Karol Conka, Bill, Juliette e Lucas Penteado no quarto Cordel do BBB 21 Imagem: Reprodução/TV Globo

Colunista de Universa

04/02/2021 04h00

Mesmo que você não esteja assistindo à 21ª edição do BBB, provavelmente teve contato com algumas das polêmicas que estão preenchendo a casa mais vigiada do país. Se está totalmente por fora, sugiro que dê uma paradinha antes de ler a coluna e dê uma atualizada nos seus conhecimentos.

Esqueça um pouco a profunda antipatia que alguns dos envolvidos possam estar lhe causando, fruto do que poderia ser classificado como possível soberba e equívoco narrativo. Tente se apegar apenas aos fatos. Tente entender a intenção por trás do excesso. Não, não, eu não vou naturalizar comportamento de gente que tá claramente fora do eixo ou se dando demasiada importância, se tomando em alta conta. Vou só observar.

Imagine que você só tá lendo essa história, não vendo. Imagine também que quem escreveu essa história não tinha por hábito descrever os detalhes da cena, apenas as narrava friamente, de modo utilitário. O narrador tá só te dando um serviço, de modos que você não tem muitas pistas sobre as personalidades dos personagens.

Essa história tem momentos de intersecção com um certo senhor que aparece vindo do suposto mundo da realidade. Ele traz algumas notícias, distribui avisos e propõe atividades. Ontem, dia 1 de fevereiro de 2021, a atividade proposta tinha o sugestivo nome de "jogo da discórdia". O mancebo propõe que os participantes apontem os membros que consideram "canceladores", explicando que "Cancelador é alguém que impõe o que tá pensando. Pessoa perfeita que vem dos céus e nos ensina a viver".

O foco da conversa sai, então, das pautas que deveriam estar sendo discutidas e acaba indo pro indivíduo. Fazer a guerra dos cancelados contra os canceladores não deixa de ser um modo perverso de tirar a importância de onde a discussão deveria estar.

Uma das pautas seria a transfobia. Se você vê o programa ou fez sua pesquisa, sabe que esse foi o episódio referente à maquiagem dos meninos e ao comportamento de um deles. Ainda que as pessoas não tenham entendido ou visto ali uma atitude transfóbica, trazer a pauta pra mesa lança luz sobre o tema e abre uma escuta que ou não existe ou está entupida. Essas discussões devem estar além de identidades pessoais, e o foco não deveria restar apenas e tão somente sobre o comportamento do emissor, da pessoa que lançou o assunto.

A maneira como o assunto é abordado num programa exibido em rede nacional é editada. O que assistimos não é necessariamente o que de fato acontece ali. Vemos um produto pronto, feito para gerar mais e mais audiência, repercussão e discussão e que, vale lembrar, se vende como um jogo. Mas a que tipo de discussão estamos sendo lançados? Fulano contra Beltrano?

Voltando para os personagens que trazem os assuntos espinhosos à tona. Nem imagino a encrenca que deva ser apresentar assuntos tão delicados e importantes num contexto como aquele. A todo ambiente competitivo e câmeras de vigilância, junte o confinamento, o julgamento de todo um país e mais a edição do que vai ou não ser visto (e como será visto).

Mas, fervendo o sangue e entendendo a oportunidade, acho que é vital pensar em sobre como lançar os assuntos diante de todo esse contexto - Com quem tô falando? Qual a vivência dessa pessoa nessas questões? Quanto e como devo falar para que a discussão possa ser de fato saudável?

O moço pivô da história da maquiagem, quando perguntando sobre quem considerava os canceladores da casa, não indicou negativamente o nome da suposta canceladora, que tem grande parte de um país convicto sobre sua atitude de cancelamento. Não é curioso isso? Ele se sente grato a ela por ter iluminado um caminho. Ele tratava de maneira jocosa, ignorando o que poderia estar por trás dos seus atos, algo que é muito sério e grave para a colega de confinamento.

Nessa edição do BBB, temos ainda uma forte candidata a ser expulsa não apenas do jogo, mas, pelo andar da carruagem e desejo de muitos, da vida pública, com o encerramento da carreira artística.

Ainda que essa moça se exceda em devaneios egocêntricos e megalomaníacos, isso não invalida em absoluto as pautas que ela e tantos outros participantes levantaram na conversa. Mas as razões dela não justificam o tratamento desrespeitoso, de humilhação e (ironicamente) mal-educado para com a pessoa que ela julga abusadora. A meu ver, não enxergo rapaz como abusador.

Para mim, ou ele estava sendo manipulador, um jogador nato, que entendeu que essa seria uma excelente estratégia de jogo, ou parece enfrentar um quadro psíquico que precisaria ser cuidado e não exposto em rede nacional.

Militância não é sobre lacre. Não é sobre ser detentor da verdade, nem dar aulas e exibir academicismo em rede nacional. Em que cartilha tava escrito que militar autorizava humilhar, agredir e sobrepujar o outro? Entendo como um exercício sério, que muitas vezes precisa ser feito de modo sutil, gentil.

Sei da necessidade de haver exércitos mais brabos, que venham à frente, com a força necessária pra chamar atenção, pra criar barulho. Mas, em rede nacional, arrogância, prepotência, violência e vociferação são um desserviço a qualquer causa. Um tiro no pé.

Junte ao espetáculo o show de horror de cancelamentos, cancelados, desejo de lacração, narcisismo, informação de um lado e falta de informação de outro. Tempere tudo com o gosto amargo das verdades absolutas e razão suprema. Temos aí a fórmula mágica da velha batalha humana que tanto amamos assistir e julgar. Uma verdadeira arena, onde todos se sentem imperadores com poderes de mandar ou não arrancar-lhes as cabeças!

É como se a gente tivesse vivendo num looping de cancelamentos. Detentores da razão cancelam os vilões. Aí as mocinhas e mocinhos "do bem" cancelam os canceladores, porque eles, sim, são os que têm o poder da verdade e são o olho que tudo vê.

Independentemente dos excessos do emissor, passou da hora da gente tentar fazer esse esforço de entender se aquela mensagem faz algum sentido. E também passou da hora de quem proporciona o circo entender quando as coisas estão saindo do controle, caminhando prum lugar perigoso, e parar um pouco o jogo. Deveriam explicar de modo claro e honesto a importância de certos temas, chamando quem pode falar sobre eles pra contar um pouco como é viver nessa pele. Tá na hora de tentar criar esse mesmo barulho da polêmica em uma outra vertente.

Seria bom usar essa mesma força pra educar, conscientizar as pessoas e buscar esse lugar de respeito e igualdade que tanto dizem defender. Já não há mais como deixarem passar mensagens xenofóbicas e de intolerância. Incentivar um Fla-flu de caça às bruxas não ajuda em nada e vai contra o suposto discurso progressista, igualitário e inclusivo de todos os envolvidos.

Quanto a nós, espectadores, a gente não pode apenas se deslumbrar com o "reality" do nome e esquecer que ele vem acompanhado de um "show" logo a seguir. É um espetáculo da realidade, apresentado de modo fantástico, contado da maneira que proporcione o maior lucro. Apenas isso.

E olha só que louco: enquanto os olhos estavam virados para o show do BBB, outras duas bobagens aconteciam. O Brasil elegia, no mesmo dia, os novos presidentes para Câmara e Senado. Essas eleições vão nortear (ou cimentar) os rumos da política no país. Mas isso não é importante, certo? Na mesma hora em que o povo se deleitava com o jogo da discórdia, Erica Hilton, mulher trans e vereadora mais votada do Brasil, ocupava o centro do Roda Viva, um dos programas de entrevistas mais importantes da TV brasileira. Mas é irrelevante ouvir o que ela tem a dizer, né?