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Fabi Gomes

Make para disfarçar: por que você acha que nariz só é bonito se for fino?

A atriz espanhola Rossy de Palma em desfile de Jean Paul Gaultier: o que seria de sua expressão sem o seu poderoso nariz?  - Anne-Christine POUJOULAT / AFP
A atriz espanhola Rossy de Palma em desfile de Jean Paul Gaultier: o que seria de sua expressão sem o seu poderoso nariz? Imagem: Anne-Christine POUJOULAT / AFP

Colunista de Universa

13/01/2021 04h00

Afinal de contas, maquiagem tem receita? Existe um jeito certo e um jeito errado de fazer? Diria que, tecnicamente, existem caminhos que te ajudam a alcançar seus sonhos da "make babado". Entender proporções, aprender sobre acabamento, potencial de cor e brilho dos produtos, e quais ferramentas funcionam melhor pro efeito que tá buscando, que podem variar de pincéis, esponjas e até suas próprias mãozinhas mágicas.

Agora, esse lance do "tem que ser assim", que muita gente insiste em propagar e impor como regra, afemaria, isso eu nunca engoli! "Ah, TEM QUE usar três cores no olho esfumado", "Você PRECISA selar a base com bastante pó", "Não deixe de aplicar cílios postiços ao final da make", "Ihh, essa maquiadora nem sabe maquiar, não faz nem contorno..."

Pausa para uma breve digressão: na hora de escolher uma maquiagem e um profissional pra você, seria legal pensar no que tá a fim e como quer se ver e se sentir. A coisa toda não é sobre o profissional demonstrar todas as técnicas que conhece, usando todos os produtos da bancada ao mesmo tempo.

Às vezes, a maquiagem mais linda praquele dia é uma que envolve seis produtos e técnicas simples. Se a dúvida for sobre as habilidades do profissional, peça pra ver o portfólio da pessoa. Hoje em dia, uma rápida passada de olhos nas mídias sociais já pode ser uma boa amostragem do estilo e talento do profissional (desde que a conta da linda ou do lindo não seja o reino da manipulação de imagem, bien sûr).

De volta à "Cartilha da make perfeita", vale muito dar aquela paradinha pra reflexão quando as coisas vêm assim meio pré-fabricadas e coroadas com o tal "TEM QUE". Tem que, por quê? É alguma espécie de mandamento divino? Por acaso foram encontrados hieróglifos numa caverna com instruções detalhadas e precisas sobre a receita da maquiagem perfeita? E ela sempre envolve um contornão marcado? Olha, ainda que tudo isso fosse verdade, eu colocaria meu dedinho no queixo, invocando meu espírito questionador e subversivo.

Lancei um curso de automaquiagem no ano passado, e pensei muito sobre o que compartilharia e como. O módulo contorno e iluminação foi o que mais me consumiu tutano: faço ou não faço? Como disse acima, estamos falando de uma técnica de maquiagem, que pode ou não ser empregada. Achei que deveria falar sobre, mostrar, mas sempre com as devidas ressalvas.

O importante é pensar por que você faz contorno e iluminação. Entender o conceito, para depois aplicar ou não.

Sim, minha gente, a técnica existe e é amplamente utilizada e muito útil para diversas situações. É ela que garante a criação ou a ênfase das proporções da face e evita o efeito flat, de rosto chapado, plano e sem forma, nos mais diversos meios. Do vídeo ao teatro, onde quer que haja muita luz, seja ela artificial ou natural, ela pode ser sua aliada para esculpir rostos e corpos.

Ao contrário do que muita gente acredita, ele não é uma invenção kardashiana. A técnica de contorno e iluminação é empregada há anos no teatro, como recurso para criação de luz e sombra. Inclusive para modificar e criar expressões.

Mas daí a passarmos para essa instituição de que maquiagem só configura maquiagem quando tem contorno, há um longo e tortuoso caminho.

Acho que uma das piores coisas pra um profissional é quando ele liga o tal piloto automático, quando inicia essa produção em escala. Passa a usar as mesmas técnicas, produtos e, o pior, as mesmas ideias e concepções o tempo todo, sem considerar a pessoa que esta à frente dele, muito menos contexto histórico e social. E é terrível quando a gente perpetua padrões e ideias assim, sem ao menos se questionar sobre as razões daquilo ali.

Até aqui, falamos de questões estilísticas e de preferências. É claro que, se você AMA contorno e não tá nem aí pra as novas tendências de minimalismo e skinimalism (precisamos falar sobre isso numa próxima oportunidade), você tem todo direito de se jogar na quebradeira e sair recortada da cadeira de make.

Agora, há outra questão que considero a mais grave e digna de reflexão - contornar para apagar traços raciais ou contornar para desautorizar uma determinada beleza. Por que um nariz só é bonito se for fino, pequeno e arrebitado? Por que um nariz achatado, característico de gente preta, precisa ser afinado? E tem gente que ainda usa o recurso discursivo sobre o nariz fino ser mais "elegante". Aham, senta lá, Cláudia!

Por que cargas d'água alguns profissionais se sentem muito confortáveis ao criar um côncavo numa mulher com traços asiáticos, sem ao menos lhe perguntar: "Senhora, é seu desejo ocidentalizar sua beleza?"

A maneira como contornamos e iluminamos os rostos no Ocidente busca reproduzir o formato de rosto oval, que, segundo a mitologia da beleza, seria o formato mais harmônico. Essa busca pela proporção equilibrada, apolínea e correta não me passa na garganta, não. Conheço um caso de uma famosa atriz mexicana que, sentada na cadeira de make, teve o belo narizão prontamente contornado, ao que perguntou: "O que você tá fazendo? Gosto do meu nariz assim como é!"

O que seria da expressão e força da atriz Rossy de Palma sem o seu poderoso nariz? Eu digo não à beleza apolínea, que, aliás, pode ser absolutamente monótona e dar soninho, e mando um salve pra beleza dionisíaca, que traz à tona a humanidade crua em todo seu esplendor e potência, cheia de incoerências e vida!