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Fabi Gomes

Este ano bruto nos trouxe uma questão: precisamos mesmo produzir sem parar?

Westend61/Getty Images
Imagem: Westend61/Getty Images

Colunista do UOL

27/12/2020 04h00

Muito desafiador esse lance de fazer uma retrospectiva de 2020. Um ano bruto. Desafiador, revelador. A gente tende a fazer uma análise subjetiva e, de verdade, acho que essa é a primeira análise a ser feita.

Como foi 2020 pra você? Como te afetou? Ouvi de muita gente que foi um ano duro, sombrio, de intensos mergulhos e descobertas existenciais. Como sombra e luz são complementares, para muitos, a dolorosa experiência do encontro com si também trouxe luz e consciência sobre padrões, vivências e comportamentos que já não faziam mais sentido e precisavam ser abandonados.

Logo no início da pandemia, eu, que sempre gostei muito de prestar atenção e tentar entender, achava curioso o fato de as pessoas (que tiveram o privilégio de ficar em casa) rapidamente montarem planilhas organizacionais e buscarem o aproveitamento total do tempo e das ofertas online de cursos, treinamentos e lives.

Não pude deixar de pensar que, de alguma maneira, era como se o universo estivesse oferecendo uma oportunidade de pausa, de parada para reflexão, para desacelerar. Para muitos, essa pausa foi evitada a todo custo. Quando foi que passamos a ser assim? Por que é tão difícil estar consigo e dar uma vadiada? Quando e por que o ser humano perdeu sua capacidade contemplativa?

A gente precisa mesmo produzir sem parar? Pra quê? Quando é essa vida pra qual estamos nos preparando e produzindo tanto? Não é agora a vida? A vida não é sempre hoje?

Feita a reflexão individual. Impossível não pensar ou, mais que pensar, ligar o botãozinho da sensibilidade e da percepção pra entender e sentir que tem uma energia no ar - a energia de mais de 1,7 milhão de mortes. Neste período da história em que estamos, ainda não tínhamos passado por algo assim, por tantas mortes ao mesmo tempo. Mesmo que você não tenha perdido alguém próximo, alguém amado, certamente conhece alguém que perdeu. E, mais que isso, 1,7 milhão de pessoas sumiram da face da Terra neste ano, vítimas de uma mesma doença. Essa energia tá aí, suspensa no ar.

Muitos perderam os empregos e outros tantos fecharam os negócios. Casais, forçados a conviver em confinamento, perceberam que o "eterno enquanto dure" já tinha derrubado o último grão de areia da ampulheta...

Aqui do meu lado, tive a chance de cozinhar para meus filhos. Tomar café da tarde com eles. Curtir, trocar ideia e, claro, me estressar com a convivência, como manda a boa regra da vida saudável em família. Muito amor, alguma dor. Treta, discute, elabora, evolui, involui, chora, pede desculpas, ri, abraça. Coisas que você só pode viver se estiver ali.

As frentes místicas falam em renovação, nova era, nova energia. Pedimos tanto por um meteoro e, de alguma maneira, parece que ele veio. Resta saber o que a gente vai fazer com o que sobrou dessa passagem meteórica.

Logo depois do primeiro período de quarentena, quando muitas pessoas voltaram às ruas e à ativa, eu tava na maior expectativa sobre como se dariam as dinâmicas sociais, as interações. Será que as pessoas vão estar mais amorosas, mais generosas? Será que aquela irritação habitual que o outro nos causava nos contatos diários - no trânsito, no mercado, na rua -, será que aquilo tudo iria acabar?

Não vi muito isso não. Nem senti muito isso. Talvez eu esteja usando uma lente meio pessimista, talvez esse seja só o meu mundo de coisas. Muitas vezes me pareceu que, além da irritação que as pessoas causam umas nas outras, agora elas também têm esse medo mútuo, o medo do contágio.

Pra falar a verdade, mesmo a coisa do sentir tá estranha. Conversando com uma amiga, chegamos a esse ponto em comum sobre o momento: há uma espécie de torpor. Um não saber fazer, sentir. Uma imobilidade. Muita gente me diz: "queria apenas ficar em posição fetal por um tempo. Quieta, protegida. Esperando".

Só que, ao mesmo tempo, como falei antes, a gente foi ensinado a produzir e a consumir sem parar. É quase como se você tivesse que produzir e consumir alucinadamente, pra provar que tá vivo. Sem produção e consumo desenfreados, parece que temos a nossa própria existência negada. Talvez venha um pouco daí essa angústia: a necessidade de existir, contraposta à incapacidade de movimento e ação, temperadas com o medo do outro.

Não queria que esse fosse um texto pessimista, mas sim reflexivo. A gente passa a vida toda sendo ensinado a manter uma falsa felicidade e um otimismo tolo e vazio. Aprendemos que precisamos sempre sorrir e esconder o sofrimento. Só que ele tá bem aí na cara de todo mundo, oferecendo enormes e importantes lições.

Claro que a gente sempre pode tomar um remedinho ou encontrar um escape pra fingir que tá tudo bem. Mas será esse o melhor caminho? Como muito nos sugeriram em diversas campanhas ao longo do ano: "vai ficar tudo bem". Ah vai é? Se a gente comprar mais um pouquinho e acreditar que tá tudo bem, tudo vai dar certo, então? Será? Olha pra dentro com carinho e atenção. Depois olha pra fora do mesmo modo.

A coluna desta semana poderia ser um levantamento de beleza, uma retrospectiva e uma lista de previsões sobre tendências. Talvez até esperassem isso de mim. Mas me parece impossível falar de beleza neste momento. Fui dar buscas sobre melhores produtos de 2020, melhores práticas, descobertas, hábitos...

E talvez a melhor prática de 2020 tenha sido escancarar sofrimentos e desigualdades, como eu já disse aqui em textos anteriores. Tentar fugir disso ou fingir que não tá rolando é o pior dos mundos. Acho que o que deveríamos fazer, enquanto civilização, é elaborar 2020.

Refletir sobre tudo que aconteceu (e ainda tá acontecendo), tentar entender os símbolos disso e sofrer o que precisa ser sofrido. Aquietar, contemplar, escutar, observar e, na melhor das hipóteses, se encontrar. Se encontrar enquanto pessoa e humanidade. Esse sim seria um bom uso da palavra beleza: a beleza do reencontro. Tomara que essa pausa forçada possa nos ensinar a nos reencontrar enquanto indivíduo e coletivo.