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Fabi Gomes

Canceladores, que tal debater ideias em vez de farejar incoerências?

RossHelen/Getty Images/iStockphoto
Imagem: RossHelen/Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

17/08/2020 04h00

Que coisa mais linda, desejável e perfeita é a imagem de uma bancada cheinha de produtos de beleza! Potes e mais potes, bem distribuídos e organizados na penteadeira ou no gabinete. Quanta alegria isso traz para o olhar e para o coração dos viciados em maquiagem e skincare?

Tem muita gente que ama ter muitas maquiagens, muitos cremes, xampus e produtos de toucador (reintroduzindo expressões com fragrância de naftalina). Mas essa potaiada (profusão de potes) é de fato usada? Dá para terminar de usar tudo antes do vencimento?

E mais intrigante ainda é quando vemos produtos ditos orgânicos e veganos no combo, produtos com validade reduzida em função de seus ingredientes e características de produção.

Mentalizou essa situação? Agora, mentaliza que o proprietário da tal bancada abraça algumas ideologias e tem uma voz alta que gosta de se fazer ouvida. Política do faça o que eu digo, mas não o que faço?

Não, não tô propondo julgamento. Proponho levantar algumas questões pra gente pensar junto. De que maneira o que falo, faço e posto tem influenciado as pessoas? Comprem mais? Tenham mais? Sejam mais? O quanto tudo isso se alinha aos meus discursos?

Eu amo empunhar bandeiras com as quais me identifico. E muitas vezes sou agilíssima na hora de torcer o nariz, puxar a boca pra baixo e balançar a cabeça negativamente para o que considero inadequado na sociedade. Mas será que estou sendo coerente em todas as minhas críticas?

Outro dia, numa conversa trivial com um amigo, arregalei os olhos e acabei entrando em modo reflexivo. No papo, ele me dizia como fica chocado e enojado com pessoas que amam criticar políticas públicas e fazem campanha na internet contra o desmatamento, mas caem de boca numa picanha comprada ali diretamente dos grandes produtores, sem tentar entender outras possíveis alternativas, como pecuária familiar, segunda sem carne, redução do consumo ou mesmo o caminho mais extremo de não consumir carne.

Que que tem a ver? Boa parte do que é desmatado serve de pasto para a deliciosa picanha. Esse amigo em questão é argentino e ama uma carne na brasa. No entanto, decidiu ser vegetariano, por ideologia mesmo.

Espera, fomos da bancada de produtos para o agronegócio? Calma, já tamo quase chegando... Só trouxe o exemplo para levantar a bola da coerência, da militância e da avassaladora tendência do cancelamento.

Mas então a gente tem que deixar de falar o que pensa? Deixa de lutar pelo que acredita? Não, não acho que seja esse o caso.

Mas talvez seja o caso de pensar muito bem na hora de apontar as armas para o outro. Antes de inflar o peito, cheio de razão, vociferar e, pior, "cancelar" outra pessoa, olhe pra si com atenção.

Faz sentido eu encher a boca para falar de quem está desperdiçando papel, se eu tiver um closet recheado de roupas e sapatos que mal uso? Ou, para voltar ao cenário inicial, posso criticar alguém que não recicla, se eu tenho uma penteadeira lotada de produtos que não uso e que vão acabar no lixo, cedo ou tarde?

Hoje em dia, rola gente muito hábil na hora de militar, levantar bandeiras de discursos politicamente corretos e surfar nas principais ondas do momento e do mercado. Muitos desses não hesitam na hora de relegar algum desavisado ao limbo do cancelamento, só porque esse resolveu falar, postar ou escrever sem antes aprovar com as instâncias inferiores e superiores dos detentores da razão e da ética na internet (e fora dela).

Será que os canceladores estão sendo realmente coerentes? Muito para pensar - um erro meu impede que um erro do outro seja criticado? Antes de cancelar, que tal propor reflexões? O que acha de debater e construir, ao invés de limar quem ousou ser incoerente?

Mas nesse panteão de fadas sensatas, cristais de sabedoria e de gente perfeita que nunca errou, errar parece não ser mais uma opção.

Mais uma vez, trouxe um tema internético para esta coluna. Notei que tenho falado muito do universo digital por aqui. Bem, para quem tem o privilégio de fazer a quarentena em casa, não sobrou muito mais do que isso. Somado à distopia do mundo real, herdamos o fantástico, cruel e perfeito (sqn) mundo virtual. Acho que não tenho trazido muita graça e beleza para este espaço. Pero es lo que hay.

Para encerrar, uma pérola da sabedoria popular: "Quando um dedo seu aponta para o outro, há três apontado para você". Portanto, canceladores, que tal baixar a bolinha? O que será de fato reparado ou construído com tanto ódio?