Cristina Fibe

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Opinião

STF pode anular decisão que absolveu acusado de violentar Mari Ferrer

Mariana Ferrer virou lei no Brasil, mas até hoje não obteve reparação pelo estupro que sofreu.

Agora, num movimento que acontece quase sete anos depois do crime, ela apela ao Supremo Tribunal Federal para que reconheça que a audiência em que foi humilhada é inconstitucional — e motivo para anular o processo em que o acusado, André de Camargo Aranha, foi absolvido.

O caso é uma aberração jurídica tamanha que motivou a aprovação de uma lei, em 2021, para garantir a proteção da dignidade de vítimas de violência sexual nos tribunais.

Um ano antes, Mari Ferrer precisou implorar por respeito na audiência que colheu o seu depoimento. Ela afirma ter sido dopada e violentada no beach club Café de la Musique, em Florianópolis, em dezembro de 2018, quando tinha 21 anos. Foi a investigação policial, e não Mariana, quem apontou Aranha como autor do crime.

Em 2020, diante de juiz e promotor, ela foi constrangida e humilhada pelo advogado de defesa, Cláudio Gastão da Rosa Filho, que chegou a dizer que "jamais teria uma filha" do seu "nível".

Mariana se dirigiu ao juiz do caso, Rudson Marcos, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina: "Excelentíssimo, eu tô implorando por respeito, nem os acusados de assassinato são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?".

Mesmo assim, a audiência seguiu. E o réu acabaria absolvido, em decisão confirmada pela segunda instância.

Em 2023, Rudson Marcos foi penalizado pelo Conselho Nacional de Justiça com uma advertência, por ter se omitido e permitido os "excessos de comportamento do advogado".

Na decisão, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF e do CNJ, afirmou que Marcos não cumpriu o seu papel: "Cabe ao juiz evitar que a testemunha ou a vítima seja constrangida e humilhada. Foi uma conduta grosseira e machista que precisava da intervenção do juiz. As imagens divulgadas fazem com que as vítimas de violência sexual passem a temer o Judiciário".

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Quando a gravação da audiência se espalhou pelo Brasil, graças a uma reportagem de Schirlei Alves no Intercept, o ministro Gilmar Mendes tuitou: "As cenas são estarrecedoras. O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação".

Cinco anos depois, os ministros têm uma nova chance de demonstrar que o Supremo não aceita que vítimas de violência sexual sejam desqualificadas nos tribunais.

No recurso dirigido à Corte, o advogado de Mari Ferrer, Julio Cesar Ferreira da Fonseca, enfatiza que a sua "dignidade foi degradada ao extremo justamente no momento processual mais importante" e defende que a anulação da audiência sirva de paradigma para impedir que situações como aquela se repitam.

Cabe agora ao STF definir se a decisão terá repercussão geral, ou seja, se valerá para todos os casos semelhantes no Judiciário. Depois disso, os ministros julgam se a audiência violou preceitos constitucionais e deve ser anulada, anulando também todo a sentença que se seguiu — o que reabre a possibilidade de o réu ser condenado.

Ao encaminhar o recurso extraordinário para análise do STF, o relator do caso, Alexandre de Moraes, afirmou que "o pleno direito da vítima de crime contra a liberdade sexual de falar está contido no exercício do devido processo legal, englobando a possibilidade de refutar todas, absolutamente todas as informações, alegações, depoimentos, insinuações, provas e indícios em geral que possam influenciar e fundamentar uma futura sentença penal contrária à sua versão; circunstância essa que, ao que tudo indica, não se mostrou presente".

Além disso, o Supremo decidiu, em maio passado, que é inconstitucional questionar a vida sexual ou o modo de vida da vítima na apuração e no julgamento de crimes de violência contra a mulher. Caso isso ocorra, o processo deve ser anulado. E o juiz que não impedir a prática deve ser responsabilizado administrativa e penalmente.

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O julgamento do recurso extraordinário de Mari Ferrer vai comprovar se o próprio Supremo coloca em prática o que defende. Se o seu caso motivou mudanças no sistema de Justiça e até uma advertência ao juiz, como pode a própria vítima ficar sem reparação?

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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