Cristina Fibe

Cristina Fibe

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Em peça, atriz conta dor de violência: 'Grito pois silêncio não nos salva'

Uma porta rachada inspirou a dramaturga e atriz Lígia Fonseca a escrever a peça "Barba Azul (ou Todo coração tem um bosque)". Como no conto original que dá nome ao monólogo, "a porta era uma espécie de guarda colocada à frente do segredo". E a lembrança da violência por trás da rachadura levou Fonseca a suar e tremer ao botar as palavras para fora.

O resultado, uma peça/performance que a autora vem encenando há quase cinco anos para plateias lotadas, com direção de Nelson Baskerville, é definido por ela como "um antiprograma de culinária que apresenta uma receita. Ou um conto de fadas. Ou uma história de abuso".

A atriz interpreta a apresentadora de um programa de cozinha que prepara uma receita "rápida e simples", "uma tentativa de cozinhar as minhas dores". O prato principal, simbolizado por um peixe, é um "predador natural", que recomenda que seja de boa qualidade, orgânico.

"Às vezes, eles são artistas, outras vezes, mágicos fracassados, e muitas vezes são os próprios cozinheiros", indica a personagem. O peixe que ela usa é da espécie Barba Azul, e "tem um certo retrogosto de abusador, mas com umas notas doces que encobrem esse amargo".

'Barba Azul' retrata realidade vivida por mulheres em todo o país
'Barba Azul' retrata realidade vivida por mulheres em todo o país Imagem: Giorgio D'Onofrio

O acompanhamento — a mulher ingênua, a que se apaixona pelo predador em questão — é inspirado na própria autora. No palco, ela é atraída pelo homem sedutor e uma década mais velho, com quem se casa ao completar 18 anos.

Daquele momento até os socos na porta, a protagonista atravessa três gestações suas — e duas da amante do marido. "Tô grávida de novo", diz a personagem. "Duas mulheres, duas barrigas. Ao mesmo tempo. Ele me diz que quem ama aceita tudo."

Enquanto amamenta e cria três meninas, a protagonista enfrenta todo o combo previsto pela Lei Maria da Penha: violências psicológicas, morais, patrimoniais, físicas e sexuais. Um strike macabro, que de certa forma nunca termina.

Ela conta: "Ele soca o para-brisas do seu carro importado o vidro trinca o meu peito também trinca também quero ir embora mas não sei como. (?) Ele diz que me ama mas diz que estou enlouquecendo. Eu quase acredito que sou louca".

Continua após a publicidade

O que Fonseca procura fazer ao expor suas vísceras no palco, numa autoficção que não deixa claro o que é real e o que é inventado, é compartilhar a receita de cura que conhece: a palavra. "Eu grito porque o silêncio não nos salva de nada", a protagonista diz. "O silêncio só traz a sensação de proteção, não a proteção."

Embora atriz e personagem concordem em romper o silêncio, no que diz respeito à realidade, Fonseca afirma à coluna sentir que, nessa história toda, ela perdeu quase tudo — "só não perdi minhas filhas".

Mesmo assim, segue. E, ao ensaiar e encenar seu texto, publicado em livro pela editora Urutau, ainda percebe algum sinal de violência de que não tinha se dado conta. E é ali, nas verdades protegidas pela autoficção, que as mulheres da plateia se veem refletidas.

Parte de um contexto de autoras que têm exposto os abusos que sofreram, Lígia Fonseca sabe que, ao romper o silêncio, ajuda outras vítimas a reconhecer e escapar de violências. Por isso, diz: "Enquanto eu receber olhos, bocas e mãos de mulheres cúmplices, continuarei."

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.