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Cris Guterres

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Menina de 11 anos foi vítima de estupro, mas transformada em criminosa

Criança ouviu de juíza Joana Ribeiro Zimmer que aborto era comparável a homicídio durante audiência - Getty Images/iStockphoto
Criança ouviu de juíza Joana Ribeiro Zimmer que aborto era comparável a homicídio durante audiência Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

22/06/2022 04h00

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Um suspiro doloroso, longo e profundo. Alguns minutos para processar a violência que acabara de discorrer diante de meu olhar atento ao vídeo da audiência em que a juíza Joana Ribeiro Zimmer e a promotora Mirela Dutra Alberton constrangem uma menina de 11 anos a não realizar a interrupção de uma gravidez após ter sido vítima de estupro.

Desde o dia 6 de maio a menina tem sido mantida pela Justiça de Santa Catarina em um abrigo para evitar que faça um aborto legal, procedimento autorizado no Código Penal brasileiro para casos de violência sexual, sem limitação de semanas de gravidez e sem exigir autorização judicial.

Toda a sequência de coação se inicia dois dias após a descoberta da gravidez, quando a criança é levada pela mãe ao Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago em Santa Catarina para realizar a interrupção da gestação. O procedimento não ocorreu mesmo diante da afirmação da vítima e de sua mãe de que não queriam manter a gestação. As normas do hospital, disseram, só permitia a realização do aborto legal até as 20 primeiras semanas de gestação. A menina estava com 22 semanas e dois dias.

A partir daí inicia-se a trajetória de transformação de uma criança vítima de estupro em criminosa. Ao buscar socorro judicial para realizarem o procedimento de aborto legal, mãe e filha tiveram seus papéis invertidos na audiência conduzida pela juíza Joana Ribeiro Zimmer, que chega a comparar o aborto com um homicídio.

Os vídeos com as imagens da audiência permanecem sob sigilo judicial, mas foram obtidos pelo The Intercept Brasil e pelo Portal Catarinas por meio de uma fonte anônima. Nas gravações veiculadas, a identidade da menina e da mãe foram preservadas.

É possível acompanhar a maneira abusiva e desumana como é conduzida a audiência sem considerar o pedido de mãe e filha para que a gravidez seja interrompida e o clamor da mãe da menina para que ela não seja retirada de seu convívio. Parecendo desconsiderar que a criança foi vitima de estupro de vulnerável, crime previsto no artigo 217 do Código Penal, a juíza insiste em perguntar para a menina a opinião do pai do bebê sobre todo a situação.

Dois dias depois da audiência, a promotora Mirela Dutra Alberton, do Ministério Público catarinense, ajuizou uma ação pedindo o acolhimento institucional da menina, onde deveria "permanecer até verificar-se que não se encontra mais em situação de risco (referindo-se à violência sexual) e possa retornar para a família natural". Num despacho da juíza de 1º de junho, ela afirmou que a ida ao abrigo foi ordenada inicialmente para proteger a criança do agressor, mas agora o motivo havia mudado. "O fato é que, doravante, o risco é que a mãe [da menina] efetue algum procedimento para operar a morte do bebê."

Infelizmente a gravidade da violência sexual cometida contra crianças e adolescentes no Brasil é tratada como um tabu. Assim como o aborto, um tema de saúde pública, é tratado com muito moralismo e quase nenhuma sensatez.

O ambiente doméstico é o local mais perigoso para nossas crianças quando estamos falando de crimes de natureza sexual. E a seletividade do sistema penal brasileiro tortura as vitimas que dependem de serviços público para alcançar a garantia de seus direitos. Desde de o dia que se iniciou o cárcere da criança em Santa Catarina, ela vem sendo proibida de frequentar a escola e não teve sua vontade atendida no que diz respeito à interrupção da gravidez.

Alguns argumentarão que a menina não tem condições de fazer essa escolha devido à sua idade, sem considerar a gravidade que corresponde à saúde da lactante uma gestação aos 11 anos de idade. Nós já assistimos esse filme antes no país que adora empossar ministros "terrivelmente evangélicos" para comandar pastas que respondem por programas de atenção à mulher, às crianças e a adolescentes.

Em 2020, a então ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Damares Alves agiu nos bastidores para impedir que uma outra criança de 11 anos, vítima de estupro e grávida, fosse submetida ao procedimento de abortamento legal. Na época, o endereço do hospital onde o procedimento seria realizado foi divulgado, assim como o nome da menina. Em nome da religião, um grupo de pessoas, representantes do ministério e aliados políticos, tentaram invadir o hospital e retardar a interrupção da gravidez.

Crianças não são mães. Os números oficiais nos mostram o tamanho do problema em nosso país. A cada hora, segundo o Fórum Nacional de Segurança Pública, quatro meninas com menos de 13 anos são vítimas de estupro.

Os resultados das pesquisas são embaraçosos para a sociedade e uma crueldade para as vítimas, ainda assim temos que considerar a subnotificação em razão do silêncio, que é utilizado como arma por agressores para coagir as vítimas.

E se fosse a sua filha? A minha filha? Será que somos capazes de nos colocar no lugar dessa mãe que descobre que sua menina engravidou após ter sido estuprada? Será que somos capazes de olhar para este caso e tentar compreender os motivos pelos quais não é interessante seguir com essa gravidez sem colocar a venda do moralismo em nossos olhos?

Estamos assistindo agentes públicos atuarem com irresponsabilidade e negligência. As políticas de proteção às mulheres no Brasil estão sendo aplicadas de modo a gerar mais desigualdades e, no centro disso tudo, tem uma criança coagida, ferida, violentada e desprotegida.