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Cris Guterres

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Produzir muito sem descansar é herança escravocrata em relações de trabalho

"Construímos uma fantasia para uma geração de mulheres que se vangloriam de tudo o que fazem em excesso. Mas isso vai dar ruim lá na frente" - Getty Images/iStockphoto
"Construímos uma fantasia para uma geração de mulheres que se vangloriam de tudo o que fazem em excesso. Mas isso vai dar ruim lá na frente" Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

23/03/2022 04h00

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Alecrim, cebola, abóbora, água mineral, suco de uva, iogurte, queijo, abacaxi, chocolate, incenso, vibrador, cristais de quartzo rosa, ametista, velas, comprimidos para dormir e óleos essenciais. Acho que não esqueci nada.

Parece uma lista de compras, mas na verdade é minha lista de itens para uma fuga bem orquestrada em nome da minha sobrevivência mental e espiritual. Consegui uma casa emprestada com amigos, aluguei um carro, escrevi uma carta e estou fugindo. Pretendo passar os próximos dias sem ser localizada por GPS, aplicativos de mensagem ou rede social. Estou indo para um lugar onde possa me esconder de todos, menos de mim.

Uma das coisas que mais me dão prazer na vida é viajar. De preferência, para lugares onde possa ser dona do meu destino a qualquer hora. Amo dirigir na estrada. Sempre sonho com narrativas bem hollywoodianas de vento na cara, som alto no rádio, óculos escuros e um lenço dançando ao vento, envolvo em meu pescoço como nos filmes dos anos 1980.

Acorda menina!

A realidade não é essa. De verdadeiro nessa viagem carrego somente o desejo de estar comigo.

Estou exausta como a maioria das pessoas do planeta, e provavelmente como você. Se você não está cansada, não venha esfregar a sua plenitude na minha cara. Estou só o pó, pedindo socorro, ou melhor, pedindo férias remuneradas de 30 dias corridos porque não aguento mais fazer o sobre humano para ser considerada foda.

Não seja bom, seja foda! Para quem? Para enriquecer quem? Para agradar a quem? Não estou rica menos me agradando. Na verdade, não aguento não aguentar mais.

Desde que assumi o risco de ser empreendedora, nunca mais soube o que são férias remuneradas de quatro semanas. Lá se vão muitos anos em que descanso é, no máximo, cinco dias e, no meu caso, que sou criadora de conteúdo, nunca há descanso, pois sempre é hora para aproveitar alguma folga ou uma viagem e produzir mais um pouquinho. Só uma foto para o feed, um reels aqui dessa cachoeira ou um texto sobre as belezas desse lugar.

Produza, produza, produza. Esse é mantra da "geração sem tempo, irmão". Para nós mulheres, sobrecarregadas das tarefas diárias de limpeza, cuidado com filhos ou com familiares, sobretudo após as perdas econômicas e afetivas dos últimos dois anos, ficou ainda mais difícil não sentir nas costas o peso das muitas vidas que carregamos e evitar alimentar a eterna sensação de não dar conta.

Essa produtividade da qual falo nos intoxica. Construímos uma fantasia onipotente para uma geração de mulheres que se vangloriam de tudo o que fazem em excesso, dos milhares de pratinhos que equilibram ao mesmo tempo, do tempo não vago em suas agendas e das horas de sono não dormidas. Amada, isso vai dar ruim ali na frente.

Quando a gente só vale pelo que produz, o lazer se torna inoportuno. Você vai se sentir uma traidora no dia que tirar férias, pois é assim que ainda me sinto. Nos dois primeiros dias fico só me lembrando de tudo o que não fiz e de quanto eu terei que fazer quando voltar. É como se estivesse me traindo por estar descansando. Só no terceiro dia é que me liberto da angústia do vazio e começo a entender a necessidade de me desligar, mas aí já era, porque minhas últimas férias se resumiram a três dias numa emenda de feriado.

Se há cobrança não há descanso, mas ainda assim, parar em meio a este caos que vivemos é privilégio de poucos. Sei quão valiosa é a oportunidade de respirar por três dias em uma casa inteira só para mim. E o quanto essa vantagem me coloca em um patamar à frente da maioria das mulheres brasileiras, que são o grupo de pessoas mais atingidas pelas dificuldades agravadas na pandemia.

Descansar deveria ser um direito de todos. Ainda mais nós, mulheres, que cumprimos dupla ou tripla jornada. Inúmeras vezes achei que estava perdendo tempo e dinheiro descansando. Pensei, por muito tempo, que esse perfil de mulher de sucesso me colocava em uma obrigação de ser excelente e acreditava que excelentes nunca dormem.

Lembra a frase que foi muito compartilhada nas redes? "Trabalhe enquanto eles dormem, estude enquanto eles se divertem, persista enquanto eles descansam, e então, viva o que eles sonham." Tudo balela.

A ideia de produtividade sem descanso é uma herança escravocrata que até hoje dita as relações de trabalho. Deve ter sido escrita por algum riquinho que nasceu com a bunda para a lua em uma tentativa de tornar palatável a meritocracia e vender uma fórmula para te tornar foda.

Não caia nessa, descanse. Respire e inspire. Olhe para você. Encontre 5, 10, 15 minutos por dia só para você. Nem que seja no banho. Mas não deixe de se desligar do mundo externo para se ligar a você mesma.

Tenho feito muita meditação nos momentos em que paro. Tem sido uma grande aliada desde que minha vida se transformou há dois anos, quando perdi minha mãe. Desde então, fui em busca de terapias e alternativas que pudessem me auxiliar a passar por esse e outros momento de perda e, principalmente, sem ter que investir muito dinheiro.

Tenho me encontrado na meditação, no exercício físico, na alimentação e na aromoterapia. A cada dia me sinto mais conectada comigo, tenho mais facilidade para entender meu corpo e ganhei mais tranquilidade para viver meu último ciclo e transformar dor e o cansaço em reflexão e progresso.

Pode parecer um absurdo dizer o quanto é importante meditar, acreditar e respirar quando a maioria de nós sai de casa na madrugada para trabalhar e estamos expostas a uma rotina de agressões do começo ao fim do dia. Do transporte para o trabalho à relação familiar.

Mas, acredite: cinco minutos diários podem te transformar. E não precisa ser a meditação. Que seja ouvir a sua música favorita no escuro, uma oração ou poucos minutos de reflexão e descoberta para a pessoa mais importante do universo: você.