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Cris Guterres

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Na guerra, cor da pele, dos olhos e do cabelo define quem será salvo

Jogadores brasileiros tentaram atravessar a fronteira entre a Ucrânia e a Polônia e foram proibidos - Reprodução/Instagram
Jogadores brasileiros tentaram atravessar a fronteira entre a Ucrânia e a Polônia e foram proibidos
Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

02/03/2022 04h00

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A guerra da Ucrânia entra no sétimo dia de conflito com um enorme comboio russo se aproximando da capital Kiev, um número estimado de mais de 352 civis ucranianos mortos —entre eles idosos, crianças e pessoas com deficiência— e uma cobertura midiática parcial que vem ocultando casos de racismo e preconceito.

A ofensiva russa sobre a Ucrânia está gerando uma crise humanitária de grandes proporções. As portas do inferno já se abriram para as vítimas da guerra. Mas, em meio ao som de bombas e morteiros, nem todos os pedidos de ajuda ganham ouvidos. Alguns são sufocados pelo principal parâmetro de diferenciação já criado pelo ser humano para incutir o medo, a inferioridade e o servilismo: a raça. Mais uma vez o mundo assiste, através de câmeras atentas de celulares pulsantes, a escolha das vidas que serão salvas por sua condição física, cor da pele, olhos e cabelos.

Em entrevista à BBC, o ex-procurador-geral adjunto da Ucrânia David Sakvarelidze se disse comovido por ver brancos de cabelo loiro e olhos azuis serem mortos numa guerra. "É muito emocionante para mim, porque vejo europeus com cabelos loiros e olhos azuis sendo mortos todos os dias com mísseis de Putin, seus helicópteros e seus foguetes", afirmou durante a entrevista. Para mim também é, mas me choca saber que só as pessoas loiras é que estão deixando o ex-procurador emocionado.

No Brasil, tenho observado que a palavra refugiado, aqui empregada em tom muito pejorativo, não tem sido utilizada com os europeus como foi e é com os sírios e os africanos. Assim como tenho observado a imprensa afirmar que esta seria a primeira grande guerra da nossa geração, quando na verdade, mais de 1 milhão de pessoas foram assassinadas na guerra em Ruanda, mais de 500 mil pessoas foram mortas na Síria, no início dos anos 2000, mais de 3 milhões de pessoas morreram na guerra do Congo. Se isso não são grandes guerras eu não sei nada sobre o valor da vida.

E essas vidas não têm valor para a imprensa brasileira e mundial, porque não estamos falando de vítimas loiras de olhos verdes ou azuis. Nenhum ser humano merece ser vítima de uma guerra, mas ainda valorizamos vidas em detrimento de outras.

Nas fronteiras da Ucrânia com a Polônia, vídeos mostram que refugiados loiros de olhos claros são priorizados no momento de entrar nos ônibus designados a fazer a travessia. Imigrantes negros vindos da África e de países da diáspora africana, como o Brasil, denunciaram as cenas de racismo e discriminação no local.

A correspondente da BBC Stephanie Hegarty compartilhou o relato de uma estudante nigeriana que estava na fronteira entre a Polônia e Ucrânia: "Ela me disse que está esperando há sete horas para atravessar. Diz que os guardas de fronteira estão parando os negros e mandando-os para o final da fila, dizendo que eles têm que deixar os 'ucranianos' atravessarem primeiro".

O jogador brasileiro de futebol Guilherme Smith vem relatando em sua rede social as dificuldades enfrentadas na tentativa de fugir da Ucrânia. Guilherme é negro e foi proibido de entrar na Polônia após ter caminhado mais de 10 horas com os também jogadores Cristian Fagundes, Juninho, a esposa dele, Vitória Magalhães, e o filho Benjamim, de quatro anos. Vitória publicou um vídeo em suas redes sociais em que conta o que enfrentaram:

"A gente chegou até a última cidade para passar na fronteira, não conseguimos. Tem militar em todo lado. Os meninos tentaram avisar que eram brasileiros, eles empurraram. Eu tentei também, eles empurraram. Não deixam a gente passar".

A Polônia nega os relatos de preferência para refugiados brancos. Eu já estive na Polônia e sei que, ali, olhos verdes e azuis são valorizados sob detrimento da vida de qualquer pessoa negra. Foi na Polônia que vivi as situações de racismo mais evidentes depois das que vivo no Brasil. E o que me espanta é lembrar que cerca de 2 milhões de poloneses não judeus foram assassinados na Segunda Guerra Mundial pelo Exército alemão. Somados a estes, mais de 3 milhões de poloneses judeus foram brutalmente assassinados num dos maiores crimes cometidos contra a humanidade —assim como a escravidão dos africanos.

Será que estamos diante de um caso em que, na ânsia por sentir o poder da liberdade, as vítimas se tornaram opressoras?

Pessoas com deficiência abandonadas

Outros que estão sendo abandonados na guerra são as pessoas com deficiência e seus familiares. De acordo com a Inclusion Europe, organização que atua em mais de 39 países pelo globo, as condições de vida das pessoas com deficiência intelectual na Ucrânia já eram bastante precárias e, com a guerra, isso se agravou ainda mais. Algumas instituições perderam fundos econômicos de apoio, e pacientes que estavam sendo atendidos de maneira integral foram devolvidos às suas famílias ou até mesmo abandonados.

"São mais de 2,7 milhões de ucranianos que possuem deficiência. Sabemos que grande parte dos abrigos são inacessíveis, incluindo os protocolos de segurança e procedimento de evacuação. A situação piora para aqueles que vivem em instituições, já que os fundos de ajuda e apoio foram removidos, o que significa que essas pessoas estão sendo deixadas para trás", pontua Ivan Baron, jovem brasileiro de 23 anos, conhecido como influencer da inclusão.

Numa guerra, homens são transformados em máquinas de matar, e as vítimas são quem estiver em seu caminho. Mulheres, idosos, deficientes e crianças costumam ser os mais afetados. Ser atingido por um ataque à bomba, ou um morteiro não é o único e maior risco. Estupro de mulheres e crianças se torna uma arma de guerra poderosa. Fugir e encontrar fronteiras fechadas quando o terror ronda é perder o direito de lutar pela própria sobrevivência.