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Cris Guterres

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Simone Biles: escolher cuidar de nós mesmos é autopreservação, não covardia

Olimpíadas de Tóquio: a ginasta norte-americana Simone Biles, 24, desistiu de disputar quatro provas da ginástica artística - Shutterstock
Olimpíadas de Tóquio: a ginasta norte-americana Simone Biles, 24, desistiu de disputar quatro provas da ginástica artística Imagem: Shutterstock

Colunista de Universa

03/08/2021 04h00

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Los Angeles, 1984. Fazia um intenso calor naquele 5 de agosto. A competição naquele dia era a maratona feminina, que estreava nos Jogos Olímpicos. Uma das corredoras, a suíça Gabrielle Andersen, não conseguiu se hidratar na última estação de água antes da linha de chegada. Ela então começa a correr mais devagar e quando entra no Estádio Olímpico sua corrida já havia se tornado uma caminhada.

O corpo torto e magro se esforçava tremulamente em passadas que pareciam pesar toneladas. Seu objetivo era terminar a prova, por isso recusou ajuda dos médicos para não ser desclassificada e continuou cambaleante debaixo de um forte aplauso até a linha de chegada. Andersen chegou na 37ª posição e, certamente, foi muito mais ovacionada do que a campeã e até hoje é lembrada por seu empenho e sua dedicação. A imagem da atleta contorcida no estádio foi considerada símbolo do esforço olímpico.

Nesta primeira semana das Olimpíadas de Tóquio, em que a ginasta norte-americana Simone Biles desistiu de competir em quatro finais em nome da sua saúde mental, a imagem do corpo contorcido de Andersen foi largamente publicada na internet por "juízes" internautas brasileiros que acreditam que Biles "amarelou" e não foi corajosa ao desistir, mas covarde, pois a coragem reside em persistir até o fim.

Mas quando é o fim? Quem é que determina o fim?

A atleta suíça em 1984 pode ter protagonizado uma linda imagem de persistência para que o mundo se orgulhasse e os defensores do 'é só você se esforçar que você consegue' tivessem um exemplo factível de que coragem é ir ao extremo. Mas ela podia ter se prejudicado seriamente com sua persistência. Naquele momento, caminhar desidratada sob o sol quente poderia ter trazido a Andersen consequências físicas irreversíveis.

gabrielle andersen - Reprodução - Reprodução
A suíça Gabrielle Andersen chega, exausta, ao fim da maratona da Olimpíada de Los Angeles, em 1984
Imagem: Reprodução

Os médicos na época foram muito enfáticos ao dizer que a suíça havia sido inconsequente ao não considerar desistir. Nada de grave aconteceu, mas poderia ter acontecido. A meu ver, a atitude de Andersen acende a luz numa linha bastante tênue entre persistência e teimosia que merece um outro texto num momento oportuno.

Quando Biles decidiu desistir da prova após ter errado um salto, ela alegou ter perdido a noção do espaço enquanto estava no ar. Momento conhecido entre os atletas como "twistie": a desorientação e consequente perda de controle sobre o corpo enquanto ele está no ar e que pode ser motivada por estresse e ansiedade.

Basta olharmos para quem é Simone Biles e logo teremos uma breve ideia de quão grande é a pressão que sofre por ser, simplesmente, uma das melhores atletas do planeta. Biles é praticante de um esporte em que os atletas iniciam suas carreiras ainda criança, entre 7 e 11 anos de idade. Desde cedo, assumem o compromisso com jornadas intensas de treino que tiram da criança o espaço leve do brincar no seu desenvolvimento.

Um outro fator importante é o quão perigoso é praticar ginástica artística. Quem diz que Simone foi covarde nunca se aventurou sequer a dar piruetas, o que dirá um duplo twist carpado com mortal. Essas pessoas nem fazem ideia de que um erro num salto como esse pode ter consequências fatais como levar à paraplegia. Perder o descontrole do corpo no ar por centésimos de segundos pode determinar o restante de sua vida.

Esta é a Olimpíada de Simone Biles. Nos Jogos de Tóquio 2020, a ginasta que tinha chances de ganhar várias medalhas de ouro, é a estrela. Todos os olhares do mundo esperando que ela seja um espetáculo, porque, sim, Simone Biles é um espetáculo. Na ginástica artística, ninguém faz o que ela faz, movimentos complexos e únicos. Ela é admirada por suas adversárias, é simpática, é humana.

Sim, Biles carrega um peso imenso sobre suas costas e um esquecimento no ar pode derrubar tudo. E ela não quer carregar o mundo nas costas. Quando desistiu, disse isso claramente. Simone sabe que autocuidado é investigar, descobrir e aplicar o que é melhor para nós. É algo individual, e não coletivo. É sobre nós, e não sobre o que os outros querem para nós.

Venho aplicando muito do que aprendi com a escritora norte-americana Audre Lorde sobre autocuidado em minha vida.

Sempre foi muito comum para mim associar as práticas que podem salvar minha vida à frescura. Como mulher e negra fui sempre inclinada a acreditar que força e determinação deveriam ser meus sobrenomes, mas ao vivenciar as dores, angústias e uma depressão de dimensões leves, eu descobri que tudo o que desejo é ser humana.

Durante minha busca por humanidade, encontrei acalanto nas palavras de Lorde, em seus escritos reunidos no epílogo "A Burst of Light" (Uma Explosão de Luz), ela diz, após ter descoberto um câncer no fígado, que "cuidar de mim mesma não é autoindulgência, é autopreservação, e isso é um ato político". Lorde sabia da fragilidade do próprio corpo e o quanto essa fragilidade se tornava uma "sentença implacável da minha limitação física", como assim registrou.

Vejo muito de Lorde em Simone Biles. Ao desistir, Biles demonstrou que conhece exatamente a fragilidade de seu próprio copo e o que seria a escolha mais ponderável em prol de cuidar de si mesma.

A despeito de quem chamou Biles de covarde e enalteceu Andersen, digo que não é sobre ser corajoso ou covarde, mas sobre encontrar força nas suas fragilidades e não se envergonhar disso. Pois os momentos especiais da nossa vida precisam ser saboreados e não sofridos — e, certamente, Biles está num momento para o qual se preparou por anos.

Aqueles que viram a desistência da atleta como um problema precisam se questionar sobre o porquê da atitude de uma mulher e negra causar tanto descontentamento. Pois para a própria Simone Biles, a escolha faz todo o sentido e não a assusta nem um pouco o fato de terem pessoas que pensam o contrário. Cabe a você lidar com o seu descontentamento, pois ela está plena e ciente de seu real tamanho.

Uma pergunta importante a ser respondida pela sociedade é por que tantos atletas estão jogando luz na questão da saúde mental e assumindo seus sofrimentos com ansiedade, depressão, síndrome do pânico, transtorno obsessivo compulsivo, entre outros. O jogador de futebol Adriano Imperador, a tenista Naomi Osaka, o jogador de basquete DeMar DeRozan ...

O que todos eles têm em comum? São pessoas atravessadas pela opressão — não que os outros atletas também não sofram, mas existe uma pressão muito maior sobre negros e sobre mulheres e negras. A estas pessoas o erro tem um peso muito mais caro numa sociedade que prefere massacrar a acolher e que acha que pode determinar o fim para o outro, como determinou para Adriano Imperador catapultando-o ao falacioso "amarelou".

Adriano nunca amarelou, Adriano sofreu e sofre até hoje com episódios de depressão que se agravaram após a morte de seu pai e teve coragem de se abrir sobre o assunto, mas não foi acolhido, foi injustiçado.

Saúde mental é importante, saúde mental primeiro.