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Cris Guterres

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Ficar em cima do muro na pandemia não salva vidas nem põe comida no prato

Solange Reis Braz, tia da colunista, morreu aos 64 anos em decorrência da covid-19 - Arquivo pessoal
Solange Reis Braz, tia da colunista, morreu aos 64 anos em decorrência da covid-19 Imagem: Arquivo pessoal

Colunista de Universa

01/06/2021 04h00

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De que lado você está na luta pela vida?

Solange tinha uma risada única, gostosa. Daquelas que envolvem e deixam intensas marcas em nossa lembrança. Sempre que ouço alguém se recordar de sua presença impactante a pessoa menciona sua risada. Uma mulher que passou por muitas dificuldades na vida. Criou duas filhas sozinha, construiu sua casa na periferia da zona sul de São Paulo com as próprias mãos. Infinitos sábados e domingos carregando nas costas latas de areia, tijolos e cimento após uma semana inteira trabalhando como doméstica.

Seu sonho era se casar vestida de branco, de véu e grinalda. Passou anos procurando um parceiro bacana que topasse encarar a vida com a mesma leveza que ela encarava. Encontrou o Zé quando já estava com quase 60. A idade não foi um bloqueio para viver um grande amor. Casou-se em novembro de 2019 como manda o figurino. Festa organizada pela filha mais nova, padrinhos e madrinhas vestidos com as mesmas tonalidades, bolo enfeitado, vestido branco, buquê, noiva atrasada e convidados emocionados.

Quem ousou dizer que o casamento era loucura acabou se comovendo. Duas pessoas com mais de 60 anos, já com filhos e netos se entregando à companhia um do outro sob juras acaloradas de amor.

Seis meses depois do casamento, Solange começou a apresentar tosse e fraqueza no corpo. O marido foi o primeiro a testar positivo para a covid, se recuperando logo depois dos sintomas que não foram tão intensos. Já Solange, após alguns dias dos primeiros sinais, foi internada com mais da metade do pulmão tomado pela doença.

Menos de uma semana depois, estavam a filha, o marido, duas sobrinhas e o genro sofrendo solitários durante o enterro de uma mulher que colecionou amigos e admiradores em todos os dias que lhe foi permitido sorrir. No último dia 28 de maio fez um ano que Solange, minha tia, partiu. Naquela ocasião eram 26 mil vítimas em decorrência das complicações pelo vírus.

Hoje, um ano depois, já passamos de 460 mil risadas gostosas silenciadas. Mais de 460 mil histórias de vida, gente que nunca mais vai sorrir, vai abraçar, vai amar. O pai de alguém, a mãe, o filho, o primo, a melhor amiga, o colega de trabalho, a companheira de faculdade, a nora, o porteiro do meu prédio, o artista admirado. Capital humano. Conhecimentos, habilidade e competências perdidas. Para além das perdas familiares tem uma outra conta que precisamos fazer, a perda econômica e social.

Segundo o FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas), a morte por covid de mais de 200 mil brasileiros entre 20 e 69 anos terá um impacto financeiro para as famílias de mais de R$ 165 bilhões de reais. Muita gente que sustentava a casa, muitos aposentados e pensionistas que estavam bancando uma família com adultos desempregados em razão das medidas de isolamento que faliram parte do setor de comércio e serviços.

Pessoas criativas e produtivas como o ator Paulo Gustavo, como o jovem cientista Nilton Barreto dos Santos, o coreógrafo e bailarino Ismael Ivo ou a maestrina Naomi Munakata. Além destes profissionais de excelência temos uma maioria esmagadora de profissionais operacionais, muitos pretos e pobres como a nossa Solange.

Bem sabemos que o vírus não escolhe suas vítimas pela cor da pele ou pelo poder econômico, mas a dualidade brasileira coloca os mais vulneráveis no centro da crise sanitária. Temos um grande responsável pelo extermínio da população brasileira e não é o vírus.

A CPI da Covid está apresentando evidências das omissões do governo Jair Bolsonaro (sem partido) durante a pandemia. As milhões de doses de vacina que ele decidiu não comprar, o dinheiro investido na compra de cloroquina, remédio comprovadamente ineficaz no tratamento da doença, que queimou o fígado de quem acreditou que podia haver tratamento preventivo.

Tristeza e desalento diante do projeto de desumanidade apresentado ao povo. Pratos e panelas vazias na mesa de mais de cem milhões de brasileiros. Fome e desprezo pelo sofrimento da população. Enquanto enterramos nossos mortos o presidente desdenha de nossas dores passeando de moto e jet ski, dissipando provocações em reportagens e redes sociais.

E eu te pergunto: de que lado você está? Do lado que se ajoelha para rezar e pedir a Deus pelo retorno da ditadura como fizeram manifestantes pró-Bolsonaro na Marcha para Jesus no final do mês de abril? Ou do lado de milhares de pessoas que foram às ruas clamar por respeito à vida e reconhecimento à nossa humanidade no último sábado, 29?

Estamos num momento em que ficar em cima do muro não te salvará da crise. O vírus é altamente contagioso e se dissipa pelo ar; mesmo no alto. ele pode te alcançar. Fingir demência diante da necropolítica de Bolsonaro que mata em ritmo acelerado não só por covid, mas também por tiros que sujam de pólvora a mão dos milicianos, não te salvará do juízo final.