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Cris Guterres

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Você pode trocar o racismo de Xuxa pela história de vitória de Renata Alves

Renata Alves ficou presa por três anos e hoje trabalha para conter o avanço da covid na favela de Paraisópolis, em SP - Arquivo pessoal
Renata Alves ficou presa por três anos e hoje trabalha para conter o avanço da covid na favela de Paraisópolis, em SP Imagem: Arquivo pessoal

Colunista de Universa

30/03/2021 04h00Atualizada em 30/03/2021 09h09

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Xuxa Meneghel, a mulher que muitos chamam de Rainha dos Baixinhos, decepcionou alguns adultos, mas não a mim, na última sexta-feira (26).

Durante uma live para a Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro), a apresentadora defendeu que, em vez de usar animais como cobaias para testes, presos deveriam assumir esse papel para testar vacinas e remédios. Segundo ela, "assim serviriam para alguma coisa".

Com esta afirmação, Xuxa trouxe à tona um pensamento recorrente de parte da elite brasileira, o de que na cadeia não tem ser humano.

Renata Alves conhece exatamente o peso da violência presente na fala de Xuxa. Sabe o que é ser tratada como alguém que não serve para nada. Em 2006, foi detida tentando entrar com maconha na cadeia durante uma visita ao ex-namorado. Pagou pelo erro com quase três anos de reclusão. Dentro do sistema carcerário, descobriu a dor e o abandono.

"Eu, Renata, a pessoa que esteve do outro lado do muro, posso falar. O sistema carcerário não ressocializa ninguém, ele não foi desenhado ou estruturado para essa ressocialização, ali é literalmente um depósito de pessoas", fala. "Acho que temos que pagar pelos erros que cometemos, mas tem que ser justo, e não é isso que temos aqui no nosso país. Estamos falando de pessoas que estão presas porque o filho não pagou a pensão e a mãe ou uma pessoa da família que tem uma pequena renda vai presa no lugar desse filho. Estamos falando de pessoas que precisam provar sua inocência e que esperam sair de lá e ter uma vida."

Durante o período em que ficou detida, Renata trabalhou na enfermaria e pôde conhecer a história de outras detentas. "Criei um laço com elas ao entender suas necessidades sem qualquer julgamento. É preciso ver o ser humano que errou e ter a sensibilidade de ouvir. Acabei virando uma referência para outras mulheres."

Renata diz ter sido referência dentro do sistema carcerário, mas é fora dele que ela faz a diferença e coloca para girar uma roda de desigualdades permitindo que resultados positivos sejam tirados de lugares em que a elite conduzida por Xuxa acredita que só existe criminalidade e gente sem valor.

Moradora de Paraisópolis, favela com maior densidade populacional da cidade de São Paulo, Renata é uma das responsáveis por um plano de gerenciamento de crise da pandemia de coronavírus muito elogiado Brasil afora. Paraisópolis está dando exemplo positivo desde o início da pandemia com ações de controle e assistência aos moradores que permitiram uma gestão eficaz de equipamentos de saúde, distribuição de kits de higiene e alimentação para os mais de 20 mil moradores da favela.

Para Xuxa e uma grande parcela da população brasileira que pensa como ela, uma mulher como Renata só serviria se pudesse ter seu corpo usado para pesquisa de vacinas e remédios. Mas a mulher que um dia foi apenas mais um número no sistema carcerário ressignificou sua história. Além de ser uma das responsáveis pelos resultados positivos no combate à covid-19 dentro da favela, Renata é uma empreendedora que transformou Paraisópolis em cenário para filmes, comerciais e novelas através de sua empresa Quebrada Produções, gerando renda não só para ela, mas para outros moradores locais. "Eu tive que lutar muito para que as pessoas entendessem que a Renata que estava ali fazendo um trabalho era a mesma que passou pelo sistema carcerário e não se deixou corromper. Porque eu tive apoio familiar. Quando você sai do sistema carcerário, você é jogado, eles abrem o portão e dizem 'siga o caminho da luz', só que você não vê luz, porque o tempo que passou lá dentro você não pode estudar, não se especializou, você ficou literalmente num depósito. Você foi depositado naquele lugar.

Eu poderia ter usado este espaço para refutar a fala da Xuxa com pesquisas sobre a seletividade do sistema penal brasileiro. Trazer as semelhanças entre as suas falas e as ações violentas e desumanas de torturadores nazistas, mas preferi apresentar uma mulher negra, pobre e favelada que esteve do outro lado do muro para demonstrar que nós podemos e devemos investir positivamente em pessoas que já estiveram no sistema penitenciário.

Empreendedores como Lais Trajano, do The Feminist Thea, Edson Ferreira, do projeto Reflexões da Liberdade, ou como a advogada Mayara Silva são pessoas que sabem exatamente o poder de impacto gerado na sociedade quando você investe financeiramente em ex-presidiários. Com projetos e empresas que apoiam e empregam pessoas egressas do sistema penal eles fazem a diferença na vida de toda uma comunidade.

"Eu costumo falar que tive um empurrãozinho do universo e consegui enxergar uma oportunidade dentro da minha favela, montar minha produtora usando mão de obra de lá e, para mim, isso é usar as pessoas de cobaia. Cobaia para o bem, eu sou uma cobaia do bem que deu certo, porque eu tive pessoas que acreditaram em mim e na minha história — e, infelizmente, são poucas as pessoas que terão esta oportunidade", diz Renata.