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Menina trans agredida em escola: 'Transformaram ela em culpada', diz mãe

Fernanda (de blusa branca, ao centro): "Sempre conversei com minha filha sobre preconceito" - Alexandra Vasconcelos
Fernanda (de blusa branca, ao centro): "Sempre conversei com minha filha sobre preconceito" Imagem: Alexandra Vasconcelos

Colunista do UOL

19/02/2022 13h12

Poucos dias depois que B., adolescente transgênero, foi agredida na escola em que estuda, em 9 de fevereiro, eu me encontrei com sua mãe, Fernanda, na rua da casa delas, em Mogi das Cruzes, cidade próxima a São Paulo — o sobrenome será suprimido para preservar a identidade de ambas.

Subimos uma escada desafiadora de seis altos degraus e, logo, estou na pequena cozinha usada por Fernanda, suas duas filhas e sua mãe, de 60 anos. Sou levada à sala e me sento no grande sofá cinza. B. entra correndo e me surpreendo. Ela é bastante alta. Depois de tentar se sentar ao lado da mãe, se ajeita no outro sofá com a tia, irmã de Fernanda. Ouve um pedaço da nossa conversa e sai. Não me parece triste, mas inquieta. Quando se senta, vejo os hematomas nas pernas, nos braços e no rosto. Ela diz que as manchas na pele "estão melhores do que ontem".

É sábado e Fernanda acabou de sair do trabalho, onde entrou às 9h e largou às 18h. "É perto", explica. "Por isso me mudei para esta casa aqui. Para poder correr e dar uma olhada na minha mãe na hora do almoço." Agora, Fernanda me diz que está pensando em se mudar de novo. Está com medo de sua filha ser agredida. "Para onde você iria?", pergunto? "Não sei, é tudo muito novo, não consigo decidir nada agora."
A conversa dura uma hora, mais ou menos.

Fernanda está retraída. Me diz que não entende tanta gente querendo a atenção da família. Conta que, por sorte, tem o apoio de advogado, que trabalha pro bono, sem cobrar, e dos irmãos. Explica que não gostaria de dar entrevistas naquele momento, não sabe se pode dizer o que iria dizer.

Quase uma semana depois, voltamos a nos falar. Fernanda aceita conversar comigo neste espaço, nesta coluna. Seguem trechos da conversa.

Como vocês passaram a semana?
Psicologicamente, estamos bem abaladas. Faz uma semana só que aconteceu tudo, eu ainda não consigo trabalhar direito. Me pego pensando no barulho daquele dia, quando fui buscar minha filha na escola. Se estou no trabalho, fico preocupada com quem está chegando em casa, batendo na porta. E se a B. abre a porta? E se ela sai de casa? Estou morrendo de medo.

E ela, como está? Sendo adolescente, sente falta de sair com os amigos?
Os amigos estão apoiando muito. Mandam mensagens no tablet que eu tenho, é o celular da casa, pois o aparelho da minha filha se quebrou. Dá para entender, né? Ela apanhou. Minha filha foi humilhada.

O que aconteceu exatamente? Como você se lembra daquele dia?
Primeiro, eu não vi o vídeo. Vi só aquele momento em que ela está apoiada no muro e parece que vai desmaiar. Então, só posso contar o que aconteceu a partir dali. Eu estava trabalhando, recebi o vídeo da amiga de uma prima que estuda na mesma escola. Chamei um Uber e acho que, em sete segundos, eu estava lá. Só pensava em proteger minha filha, em tirá-la de lá. Parece um filme. Foi tão rápido que só recebi a mensagem da escola me avisando do que aconteceu 22 minutos depois que eu já tinha chegada.

E como você encontrou sua filha?
Ela estava na sala da diretora. Esconderam ela para que ela não sofresse mais agressões.

Se a deixassem no meio da confusão, acho que teriam matado ela.

Nem lembro se falei com a diretora, lembro que peguei a B. pela mão e fomos para fora, a gente só queria ir embora. Tinha um carro de polícia que levou a gente para casa. Logo depois, fomos para o hospital, ela estava machucada em vários lugares.

Vocês conversaram sobre o que aconteceu?
Conversamos no caminho. Ela me contou que foi agredida por causa da identidade dela. Desde o primeiro dia de aula [a agressão aconteceu no segundo dia de aula, B. era aluna nova], os alunos ficaram fazendo piadinhas, jogavam bolacha nela, gritavam "que bicho é esse?" quando ela passava. No segundo dia, eles foram mais agressivos ainda.

Alguns relatos dizem que ela estaria defendendo uma amiga de falas racistas.
Não acho que foi isso. Minha filha me disse que alguns alunos da escola foram agressivos e transfóbicos com ela. Prefiro não falar mais desse dia. Minha filha foi agredida, mas muitas vezes parece que ela não é a vítima, mas a ré.

Quando você sente isso, essa inversão de papel?
Tenho sentido isso o tempo todo em relação à escola. Na segunda-feira, quando aconteceu uma reunião no colégio, parecia que a B. era a culpada. Tinha um monte de gente e só se falava em transfobia, conscientização, que todo mundo era vítima, que eles iam fazer isso e aquilo. Mas em nenhum momento perguntaram o que podiam fazer pela minha filha. No final da reunião, precisamos perguntar qual era o plano para ela, se ela ia voltar ou não para a escola, como eles iam garantir a segurança dela.

Qual foi a resposta?
Nenhuma. Só blablabá, nada prático. Então, eu decidi que, enquanto não tivermos certeza de que ela estará segura nessa ou em outra escola, a B. ficará em casa.

E como ela vai ter aula?
Hoje recebi um link da escola, no meu tablet, para a B. acessar o conteúdo de aulas. Mas minha filha não tem mais celular e estou sem condições de comprar um agora. Não sei como vou resolver isso. O que me preocupa são duas coisas: a segurança dela e as faltas. Ela está no primeiro ano, passou o ano passado inteiro sem aula por causa da pandemia.

Você disse que todos estão abalados. Sua filha está tendo atendimento psicológico pela escola?
Ela foi em uma psicóloga indicada pelo meu advogado. A escola, só hoje, quase uma semana depois, me mandou uma mensagem perguntando se podia marcar um horário com um psicólogo. Informei que já estou sendo acompanhada. E sabe o quê? Estou tão confusa que não sei mais em quem confiar. Não sei se um psicólogo enviado pela escola ia nos ajudar ou atrapalhar.

Essa foi a primeira agressão que sua filha sofreu?
Foi. Quer dizer, faz um ano que ela está fazendo a transição, usando roupas femininas. Como não frequentou a escola no ano passado, por causa da pandemia, essa foi a primeira vez que apareceu nas aulas vestida assim. Na rua, você sabe, sempre tem aquelas piadinhas, as vizinhas que vêm me contar que viram a B. de saia, esse tipo de coisa. Mas agressão, nunca.

Sempre conversei com ela sobre isso, para ela se preparar, nem todo mundo ia aceitá-la. Mas a gente nunca pensou em passar por uma coisa como essa.

Quando você soube que sua filha era transgênero?
Ah, acho que sempre. Ela sempre foi diferente. Gostava de se maquiar, de usar o sapato de salto alto da minha mãe. Gostava de coisas de menina. Depois, quando ela cresceu, começou a dizer que queria ser menina, mulher.

Sua família aceitou? E você?
Sim, eu aceito. Me preocupo, mas aceito. A família também. A gente ainda escorrega de vez em quando, chama ela pelo nome masculino, mas estamos nos adaptando. B. entende nossa confusão, nunca reclamou. Uma coisa importante: minha filha é uma pessoa amável, brincalhona. Ela sempre foi a alegria da casa.

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