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Livro fala das coisas como elas são na infância de uma criança trans

Criança trans - Getty Imagens
Criança trans Imagem: Getty Imagens

Colunista do UOL

04/12/2020 04h04

O livro ficou guardado na estante, esperando sua vez. Sem reclamar, como uma pessoa tímida que vê a fila furada por outros que chegaram bem depois. Quando eu finalmente o abri foi por falta de opção, tinha acabado meu estoque de suspense. "As Coisas como Elas São" (Editora Harper Collins) me capturou na primeira linha - "Há muito tempo atrás, Claude nasceu..." - e, três dias depois, eu estava absolutamente apaixonada. Arrebatada, como fico quando os livros importantes surgem na minha vida.

A escritora, Laurie Frankel, conta a história de Claude, uma menina que nasce menino. Claude veste camisetas do irmão mais velho para fazer de conta que está usando vestidos. Pendura cachecóis na cabeça para fazer de conta que tem cabelos compridos. O sonho dela é ser uma fada.

Claude não é um menino comum. E quando sua família a leva para outra cidade, onde é apresentada na escola como Poppy, também não será uma menina comum. Claude Poppy é uma criança e, depois, uma pré-adolescente que se enxerga como uma garota, mas tem um pênis. Não só se enxerga, se sente também. Os pais dela sabem a diferença entre uma menina e um menino, pois tiveram outros quatro filhos mais velhos. Todos com pênis. Todos meninos. Nenhum deles nunca sonhou em ser fada, embora os pais não tivessem se importado com isso. Eles eram do tipo que não viam sentido em reprimir as fantasias das crianças e, até que Claude Poppy quis vestir um biquíni para ir ao clube, não estavam exatamente preocupados com a reação dos estranhos.

Laurie fala das dúvidas, angústias e alegrias dos pais com sua filha de uma maneira que só nos resta pensar: como ela sabe disso? Como ela sabe que os pais, mesmo não impedindo que o filho se vista com vestidos em casa, temem a hora em que ele vá querer se vestir de menina para ir à escola? Que a mãe, mesmo quando diz à filha que a ama do jeito que é, pensa que a vida dela seria mais fácil se ela não fosse do jeito que é? Como a escritora sabe de tudo isso?

Laurie Frankel tem uma filha transgênero, o resto da família é uma invenção. E, embora um escritor seja um contador de histórias que não necessariamente tenha vivido, eu achei que Laurie já tinha passado por várias das experiências que são relatadas no livro, como a discussão que tem com o marido sobre tratamento hormonal disponível para crianças na condição de Claude Poppy.

O tratamento consiste em adiar a puberdade —o surgimento de seios ou barba, por exemplo— para que o/a jovem possa, depois, definir qual sua identidade de gênero. O pai parece encarar a situação com mais simplicidade: Poppy é uma garota e usará os recursos médicos possíveis para crescer como tal. A mãe se sente insegura em relação aos eventuais efeitos do tratamento no amadurecimento emocional e cognitivo da filha. O pai gostaria que a vida de Poppy fosse a vida normal de uma menina. A mãe sabe que as coisas não são mágicas. Poppy também é Claude, Claude é Poppy.

Essa é a grandeza do livro: falar das coisas como elas são, não como deveriam ser. As coisas são complicadas, as coisas são grandes dúvidas. Falar de dúvidas dos pais sobre o que é melhor na criação de uma criança trans parece algo perigoso, algo que pode ser usado contra elas próprias. Em algum momento, falar de dúvidas é como dar um passo para trás no caminho árduo de garantir direitos de existência e de proteção à vida de pessoas trans. Mas como não falar de dúvidas quando a existência de gêneros diversos é, em si, um grande ponto de interrogação sobre o tradicional masculino-feminino?

Recomendo o livro para todos, pais e educadores, avós, irmãos. Aliás, estes últimos são personagens contraditórios, complexos, incríveis. Os irmãos de Claude Poppy trazem o mundo fora da bolha para dentro da família, muitas vezes questionando as decisões dos pais e sofrendo, na condição de irmãos, a vida dos diferentes. Mas quem dera toda criança trans tivesse irmãos amorosos como eles.

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