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"Somos todos afrodescendentes", diz bióloga sobre racismo

Tábita Hünemeier, professora da Universidade de São Paulo (USP). - Reprodução/YouTube
Tábita Hünemeier, professora da Universidade de São Paulo (USP). Imagem: Reprodução/YouTube

Colunista do UOL

28/11/2020 04h00

Uma bióloga quer contar a história do brasileiro. E esta história pode vir a ajudar no combate ao racismo no país. A bióloga se chama Tábita Hünemeier, é professora no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP) e, junto a uma equipe de pesquisadores, desenvolve o Projeto DNA do Brasil, estudo que tem o objetivo de mapear geneticamente 15 mil indivíduos, nos aspectos evolutivos e de saúde.

"A questão da saúde é importante porque todos os estudos médicos sobre os genes associados a doenças foram feitos em populações europeias", diz ela. DNA do Brasil é o maior estudo genético do mundo já feito com uma população miscigenada. Começou há um ano e, por causa dele, 2.000 pessoas já descobriram de quem descendem. Na próxima fase do projeto, mais 5.000 saberão um pouco mais sobre sua ancestralidade. Ouvi Tábita falando sobre o projeto em uma conversa com a professora Lygia Pereira, que também lidera o projeto, no programa USP Talks, e fiquei encantada. Aqui, falamos sobre identidade brasileira e racismo.

Você conduz um estudo sobre a genética do brasileiro. Como cientista, qual sua visão sobre um episódio como o assassinato de João Alberto Freitas, negro, por dois seguranças brancos do supermercado Carrefour?

Primeiro, pessoalmente, lamento muito a violência cotidiana da nossa sociedade, especialmente contra pessoas afrodescendentes. Como observadora desta violência, fico chocada com o fato de termos nos acostumado tanto com ela. Não estranhamos, por exemplo, que em uma cidade como São Paulo quase todos os porteiros, empregadas domésticas e garçons sejam negros. Isso é de uma violência gritante, uma população inteira marginalizada sem que a gente se dê conta. Ou sem que a gente queira se dar conta. Quando cheguei a São Paulo, há cinco anos, foi a primeira coisa que me chamou a atenção.

Curioso você falar isso, pois o assassinato de João aconteceu no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre.

Sim, mas não acho que o problema do racismo no Rio Grande do Sul seja maior que nos outros estados. No entanto, o bairrismo é, sim, maior. O estado sempre se considerou afastado do Brasil, por questões históricas que criaram uma identidade de gaúcho muito forte, mais forte que a identidade brasileira. Quanto ao racismo, no Rio Grande do Sul existem menos afrodescendentes, pois a escravidão só chegou ao estado bem tarde, mais perto do período da abolição. Talvez por esse motivo, entre outros, a classe média de lá não considere normal que todos os trabalhadores domésticos sejam negros, como acontece aqui, no Sudeste.

Por falar em identidade, qual é a identidade brasileira que o Projeto DNA do Brasil está revelando?

Não somos só um país mestiço, somos multiétnicos. Somos centenas de povos convivendo. A segunda língua mais falada aqui, por 3 milhões de indivíduos, é uma variante do alemão, para se ter uma ideia do quanto desconhecemos o país. Todos sabemos que somos descendentes de três grandes matrizes, os indígenas, os europeus e os africanos. Mas, na verdade, nossa ancestralidade é muito mais rica. Os 5 milhões de africanos que foram sequestrados para trabalhar como escravos no país falavam cerca de 200 línguas diferentes. Ou seja, vinham de centenas de povos diferentes. Os 5 milhões de nativos americanos encontrados pelos portugueses falavam mais de mil línguas. Os próprios europeus, com as sucessivas migrações, eram diferentes. Além deles, vieram os asiáticos, os oriundos do Oriente Médio, os ciganos. Você sabia que existe quase 1 milhão de ciganos no país? Nosso estudo quer ajudar a contar a história dos nossos ancestrais. Quem eles eram, de onde vieram.

Conte uma dessas histórias, por favor.

Acredita-se que uma linhagem de nativos, a dos tupiniquim, esteja praticamente extinta. Seus poucos remanescentes, que moram no Espírito Santo, perderam grande parte da identidade histórica e cultural. Na verdade, perderam o seu passado, por isso não se sabia qual a origem desse povo. Existiam hipóteses da arqueologia e da linguística, aliados importantes da genética, mas não havia como ter certeza. Nosso estudo conseguiu traçar um parentesco mais próximo com povos do nordeste da Amazônia. Portanto, os tupiniquins encontrados pelos portugueses no século 16 haviam andado 4 mil km do rio Madeira até fixar moradia na costa sudeste do país. Essa história fala do colapso populacional dos povos indígenas. Outras vão resgatar a origem étnica de um indivíduo descendente de africanos, vão dizer a qual povo ele está ligado e onde seus antepassados moravam.

Apesar desse colapso, uma investigação genética encontrará ancestralidade indígena nos brasileiros, certo?

Sim. O colapso foi de 90% da população, mas a pesquisa com DNA mitocondrial [que investiga a herança genética que passa de mãe para filha e revela a fotografia dos nossos ancestrais] mostra linhagens de povos indígenas em 35 a 40% da população. Da mesma maneira, encontraremos afroascendência em cerca de um terço dos brasileiros. O que implica presença de ancestrais dessas etnias, ainda que há muito tempo, em 70% dos brasileiros.

O fato de os brasileiros terem ancestrais indígenas e africanos, em sua maioria, não deveria nos tornar antirracistas?

A ideia do racismo, em si, não se sustenta. Se falarmos em termos genéticos, a diferença entre seres humanos é de apenas 0,1%. [A diferença entre o DNA humano e do chimpanzé é de 1,6%, do peixe-zebra, 30% e da banana, 50%] Esta não é uma diferença que, em biologia, justifique a separação dos humanos em raças, coisa que acontece em outras espécies. A diferenciação dos humanos por cor de pele, por exemplo, está relacionada a uma adaptação ao ambiente com menos incidência de luz UV, importante para aumentar a metabolização de vitamina D, e prevenir doenças como raquitismo. Não tem nenhuma relação com algo cognitivo, ou estético, ou algum valor social implícito. É apenas um processo biológico, como tantos outros, relacionado à sobrevivência de nossa espécie em determinado ambiente.

Você acha que a genética pode combater o racismo?

Na minha percepção, a única maneira de combater o racismo é um estudo da diversidade humana por meio de várias disciplinas, a história, a biologia, a antropologia. Todos somos descendentes de africanos, a espécie humana surgiu na África e se espalhou pelos outros continentes.

Por outro lado, a genética foca na diferença...

Sim, porque ao mesmo tempo em que somos muito iguais, somos diversos. Essa diversidade é boa e a gente deveria valorizá-la. Por isso, não suporto argumentos racistas.

Quais são os piores?

Dois, para mim, são insuportáveis. O primeiro é o de alguns descendentes de imigrantes que se comparam aos descendentes de escravos. Eles dizem que ambos chegaram na condição de estrangeiros ao país. Acho estúpida a comparação, pois não enxerga a diferença entre a condição de escravo e ser livre, e também dos benefícios dados pelo país aos imigrantes e negados aos recém-libertos. A outra é a da meritocracia. Neste caso, imagina-se que quatro séculos de escravidão não tiveram nenhum impacto nas condições emocionais, econômicas, sociais de um indivíduo. É como apostar uma corrida em que o atleta branco sai com 1 km de vantagem sobre o atleta negro. Como é possível não enxergar a força das condições familiares e históricas na situação de uma pessoa? Eu sou branca, de olhos claros, nunca fui vítima de preconceito em nenhum lugar do mundo. Um estudante negro que trabalha em minha equipe é vítima de preconceito racial o tempo todo. Como vou negar isso? Ou negar o fato de que ele é o primeiro, na história de centenas de anos de sua família, a fazer faculdade? Ah, tem também um argumento muito sem noção: que os negros estão melhor no Brasil do que estariam na África. Isso ignora todo o processo escravagista, além da destruição da própria África durante a exploração do continente pelos europeus.

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