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Andrea Dip

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Robinho tentou 'culpar' vítima por estupro. No Brasil, isso funcionaria?

O jogador Robinho foi condenado a nove anos de prisão na Itália por estupro coletivo - Thomás Santos/AGIF
O jogador Robinho foi condenado a nove anos de prisão na Itália por estupro coletivo Imagem: Thomás Santos/AGIF

Colunista do UOL

21/01/2022 04h00

"Acredito que o Brasil é um grande país, não pode proteger culpados, tem que proteger as vítimas. Esse foi um processo que concedeu, do começo ao fim, todos os direitos de defesa para quem foi julgado culpado. Foram 15 juízes, desde a investigação até hoje, que consideraram culpados esses dois", disse ao jornal Folha de S.Paulo na tarde desta quarta-feira (19), o advogado Jacopo Gnocchi, que defende a vítima no caso de estupro coletivo cometido pelo jogador de futebol Robinho, envolvendo ainda um amigo dele, Ricardo Falco, e mais quatro homens em uma casa noturna em Milão, em janeiro de 2013.

A declaração foi dada no dia da condenação de Robinho e Falco pela justiça italiana a 9 anos de prisão e uma multa de 60 mil euros. O advogado comentava o fato de que como os dois estão no Brasil, a aplicação da pena é mais complexa já que o país não extradita brasileiros natos. Após a publicação da sentença, a Justiça italiana poderá formalizar um pedido ao governo brasileiro para que a execução das penas aconteça aqui. "Pessoalmente, vejo isso como um problema de foro diplomático, político, executivo - chamem como quiser. A sentença definitiva agora existe. A bola agora passa para o Brasil", declarou Gnocchi.

Segundo investigação, Robinho, Falco e mais quatro brasileiros praticaram violência sexual de grupo contra a vítima, que foi embriagada por eles, levada inconsciente ao camarim da casa noturna e estuprada várias vezes. A jovem tinha 22 anos na época. Os outros quatro homens estão sendo julgados em um processo separado.

Além do depoimento da vítima, a acusação se baseou em conversas telefônicas interceptadas com autorização da justiça italiana, incluídas como provas no processo. Em uma das transcrições, um amigo do jogador que estava presente na noite do crime, diz que viu Robinho quando ele colocava "o pênis dentro da boca dela", ao que o jogador responde que "isso não significa transar". Em outra, afirma: "Estou rindo porque não estou nem aí, a mulher estava completamente bêbada, não sabe nem o que aconteceu".

Chama a atenção o fato de que, durante todo o processo, a defesa de Robinho se concentrou em tentar desqualificar a vítima, inclusive com fotos retiradas de suas redes sociais, em que ela aparece ingerindo bebidas alcoólicas. A linha de defesa não foi aceita pela justiça italiana mas ainda é bastante utilizada e acolhida pelo judiciário brasileiro.

À coluna, a defensora pública de São Paulo Ana Rita Prata faz uma comparação com o caso Mariana Ferrer: "Tem algumas semelhanças nos relatos. A diferença é que, no processo contra Robinho, os acusados foram condenados pela Justiça italiana, e há toda uma discussão sobre como essa pena pode ser cumprida ou não. Mas sobre as teses de defesa, a gente vê que não é incomum que, em crimes de gênero, contra a liberdade sexual da mulher, a defesa tente reduzir o valor da palavra da vítima ou o parâmetro de moral social para que o relato ou a acusação sejam rechaçadas", explica a defensora.

"Isso é bastante prejudicial já que acaba por focar na pessoa da vítima e não na conduta do acusado. A defesa de uma pessoa acusada de um crime deve demonstrar que não houve crime ou que o crime não foi praticado pela pessoa. Quem foi a vítima, sua moral, sua história de vida não é relevante para aquela discussão".

Prata afirma que vê isso acontecer com muita frequência em casos de crimes contra a mulher, em que a defesa se baseia numa desigualdade social estrutural como um atalho para absolvição ou redução de pena de um acusado. "Não é eticamente adequado e pode haver aí uma violação de direitos dessas vítimas. Do ponto de vista legal a gente tem a lei Mariana Ferrer ,de 2021, que limita essas manifestações que atentam contra a dignidade da vítima mas se restringe a atos processuais específicos que são as audiências."

Para a defensora, o que mantém essa linha de defesa baseada na culpabilização das vítimas também é o acolhimento dessas teses pelo Judiciário brasileiro: "Quando passarem a não ser acolhidas, também vão deixar de ser usadas pelos advogados defensores. É uma coisa que se retroalimenta".

Vale ressaltar que a legislação brasileira entende como crime de estupro de vulnerável quando a vítima usou álcool e ou outras drogas ilicitas e teve sua capacidade de resistência diminuída por causa disso, independentemente de terem sido fornecidas pelo agressor.

"A partir do momento que a vítima não está consciente ou apta para exercer livremente o consentimento, aquela prática sexual pode caracterizar um crime de estupro porque o consentimento é essencial. E a partir disso a gente desconstrói aquela ideia de que estupro é só quando a mulher é carregada pra um lugar ermo por alguém desconhecido, que aparece no meio da rua. A gente inclui casos de práticas cometidas por pessoas conhecidas, por alguém que estava junto, na mesma festa, tem amigos em comum e até familiares, companheiros, maridos", acrescenta a defensora pública.

E em casos de violência sexual e práticas sexuais sem consentimento, Prata recomenda: "Busque um serviço de saúde para fazer profilaxia de IST [infecções sexualmente transmíssiveis], gestação indesejada e posteriormente, se for a vontade dela, procurar uma delegacia de polícia ou ainda um atendimento jurídico em uma defensoria pública, com uma advogada ou advogado ou Ministério Público, para se consultar antes de fazer o boletim de ocorrência, caso haja dúvidas. É importante dizer também que existem centros de referência no atendimento a mulheres em situação de violência de gênero, com atendimento psicológico, social e jurídico".