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Andrea Dip

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Denúncias de abusos sexuais relacionados ao caso Samuel Klein inspiram PL 

Agência Pública
Imagem: Agência Pública

Andrea Dip, com reportagem da Agência Pública

Colunista do UOL

03/12/2021 04h00

Francielle Wolff Reis afirma ter sido submetida a uma rotina semanal de abusos e exploração sexual por parte do fundador das Casas Bahia, Samuel Klein, dos 14 aos 16 anos, na sede da empresa em São Caetano do Sul (SP) e também em viagens ao litoral do Rio de Janeiro. Em entrevista à Agência Pública publicada em abril deste ano - dentro de uma série de reportagens sobre esquema de exploração sexual de crianças e adolescentes que teria sido mantido pelo "rei do varejo" por cerca de três décadas -, ela disse: "Samuel colocou um pacote de dinheiro em cima da mesa e perguntou: 'Você quer?"

Alguns meses antes, o UOL também havia publicado uma série de reportagens, sobre o filho de Samuel, Saul Klein, com denúncias de abuso e aliciamento de mulheres para a prostituição.

Após uma longa e difícil batalha judicial, no final de outubro, uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo negou à Francielle o direito de ser indenizada, com o argumento de que o prazo para que ela entrasse na Justiça contra seu suposto agressor tinha acabado e o caso tinha prescrito.

A lei é muito cruel com essas mulheres e meninas: o Código Civil prevê que vítimas têm até três anos para entrar com ações de reparação de qualquer tipo. Em relação às vítimas menores de 16 anos, o prazo fica suspenso até que elas atinjam essa idade e então valem os mesmos três anos previstos em lei. Até o consumidor consegue uma reparação mais rápida do que uma vítima de violência sexual porque tem até cinco anos para iniciar uma ação. Segundo relatos, o prazo curto abafou acusações de outras mulheres e meninas contra Samuel Klein, morto em 2014.

Ao ler as reportagens, a deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) decidiu propor um PL na última sexta-feira (26), para alterar esse curto o prazo prescricional.

Os repórteres da Pública Ciro Barros e Clarissa Levy conversaram com Sâmia e com Francielle, para essa matéria que você lê em primeira mão e na íntegra aqui na coluna e no site da agência. Além disso, Clarissa contou à coluna com exclusividade que, na conversa com Francielle, a moça lembrou que, na época dos abusos, ela e a mãe desenvolveram graves transtornos de saúde mental. Por essas dificuldades, elas acabaram demorando para ter coragem para denunciar. Quando finalmente foram a uma delegacia da mulher, ficaram mais de sete horas esperando para serem ouvidas. Também ficaram meses esperando por um advogado de justiça gratuita sem sucesso, depois tentaram um advogado particular que acabou desistindo da ação.

Leia a matéria na íntegra:

PL inspirado no Caso Klein quer ampliar reparação civil para vítimas de abusos sexuais

Por Ciro Barros e Clarissa Levy

Proposta da deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) foi motivada por reportagem da Agência Pública que revelou denúncias de esquema de exploração sexual mantido pelo fundador das Casas Bahia

No final de outubro de 2021, uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo negou à Francielle Wolff Reis o direito de ser indenizada pelos abusos sexuais aos quais diz ter sido submetida por Samuel Klein, fundador da Casas Bahia, quando tinha entre 14 e 16 anos de idade. A sentença dos desembargadores Costa Neto e Ademir Modesto de Souza argumenta que o prazo para que Francielle entrasse na Justiça contra seu suposto agressor tinha estourado, declarando o caso prescrito sem julgar os fatos. Segundo a sentença, o prazo de três anos para recorrer havia acabado cerca de dois meses antes de Francielle ter iniciado o processo, em 2013.

"É muito triste porque a gente sofre abuso, tem medo e aí quando se encoraja já não tem mais direitos", diz Francielle. Ela relata ter sido submetida a uma rotina de violações sexuais por dois anos, de 2008 até janeiro de 2010, quando sua mãe descobriu os abusos e quebrou o ciclo de violência. Francielle conta que no ano seguinte fez uma denúncia na Delegacia da Mulher de Carapicuíba (SP) e durante um ano tentou conseguir um advogado público para entrar com um processo contra Samuel Klein, conhecido como 'rei do varejo'. Por falta de recursos financeiros e problemas de saúde mental, Francielle e a mãe contam que só conseguiram um advogado que topasse iniciar a ação cerca de dois anos depois, dando entrada no processo em março de 2013, quando ela tinha 19 anos, três anos e dois meses após o último abuso relatado.

Atualmente, o Código Civil prevê que vítimas têm até três anos para entrar com ações de reparação de qualquer tipo. Em relação às vítimas menores de 16 anos, o prazo fica suspenso até que elas atinjam essa idade e então valem os mesmos três anos previstos em lei. Como Francielle tinha 16 anos completos no ano em que os abusos alegados acabaram, em janeiro de 2010, a Justiça compreendeu que o prazo para que ela abrisse um processo contra seu agressor havia acabado em janeiro de 2013.

O pequeno prazo para as vítimas buscarem indenização em casos como o de Francielle atraiu a atenção da deputada Sâmia Bonfim (PSOL-SP). Na última sexta-feira, dia 26 de novembro, ela apresentou o PL 4186/2021, que visa alterar o prazo prescricional para a reparação civil das vítimas de crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes.

O novo PL propõe aumentar para 20 anos o prazo para ações reparatórias que tratem de crimes sexuais contra crianças e adolescentes. Pela proposição, o prazo começaria a ser contado quando a vítima atingir 18 anos.

O projeto de lei foi motivado pela reportagem especial da Agência Pública que revelou as acusações de um esquema de exploração sexual de meninas que teria sido mantido pelo empresário Samuel Klein, fundador das Casas Bahia, por pelo menos três décadas. O trabalho foi premiado no Troféu Mulher Imprensa. A Pública entrevistou dez mulheres que disseram ter sido abusadas, ex-funcionários de Klein e das Casas Bahia que teriam testemunhado as violências e também consultou milhares de páginas de inquéritos policiais, ações trabalhistas e ações cíveis. Na investigação, foram coletadas também fotos e vídeos que corroboram as denúncias contra o chamado "rei do varejo".

A deputada Sâmia Bomfim confirmou à reportagem que elaborou o projeto de lei a partir das denúncias veiculadas pela Agência Pública. "Foi a partir do caso, sim. A legislação atual fala em três anos [para a prescrição de ações civis de reparação]. A partir de um caso como esse, em que se passaram 30 anos a partir de algumas histórias, as vítimas ficam completamente desamparadas sem poder recorrer a uma reparação financeira, algo que possa correr na esfera civil. Por isso que a gente resolveu fazer a proposição, pois ainda não tem o debate devido aqui na Câmara e na sociedade", afirma a parlamentar. "Só depois de muito tempo em muitos casos que as vítimas se dão conta do que aconteceu, principalmente depois que elas ganham a maioridade e têm um debate sobre sexualidade e sobre o que é uma situação de violência sexual. O tema, além de revirar o estômago, nos trouxe esse alerta de que hoje as mulheres estão desamparadas para buscar o seus direitos na esfera civil", diz.

Ela explica que o PL é espelhado na Lei Joana Maranhão, de 2012, que estabeleceu, na esfera penal, um prazo de prescrição de 20 anos para casos de crimes sexuais cometidos contra crianças e adolescentes a partir do momento em que a vítima completa 18 anos. Sâmia acredita na aprovação de sua proposta. "Os temas que dizem respeito à violência contra mulheres e meninas, apesar do momento difícil da política, tendem a ter força aqui no Congresso. Geralmente, os temas que dizem respeito ao recrudescimento de penas. Essa é um pouco a lógica. A gente vai trazer esse debate nesse projeto, que acaba sendo inédito, no que diz respeito a uma reparação na esfera civil. Eu não acho que vá ter tanta resistência. Primeiro, porque diz respeito a adolescentes e crianças e ainda não tem uma legislação específica para esse público e pode ter algum apelo aqui na Câmara. E estamos tratando de algo muito grave. A gente espera que tenha alguma força, ainda que fuja do debate punitivista corriqueiro e da lógica penal", avalia.

"É revoltante porque uma menina pode sofrer um abuso e só entender isso depois, por exemplo, quando sair da casa dos pais. Para ela [a vítima] não seria tarde demais para denunciar. Mas para a Justiça pode ser", lamenta Francielle. Seu processo é uma das poucas ações judiciais contra Samuel Klein que ainda tramitam na Justiça brasileira. Se a proposta legislativa vingar, outras mulheres que relatam ter sofrido abusos do fundador das Casas Bahia ainda teriam a possibilidade de tentar reparação.

Prescrição e acordos extrajudiciais abafaram as denúncias contra Klein

Além do caso de Francielle, houve reconhecimento de prescrição em uma série de ações cíveis indenizatórias propostas por mulheres que relataram ter sido abusadas por Samuel Klein durante a infância, na sede das Casas Bahia e em imóveis de sua propriedade, entre 1980 e 2010. Como é comum ocorrer com vítimas de abuso, as mulheres só conseguiram procurar a Justiça depois de adultas e então se depararam com o prazo de prescrição.

"Até o consumidor tem uma lei de reparação mais benéfica do que uma vítima de estupro dessa natureza, porque o consumidor tem cinco anos. O Código de Defesa do Consumidor prevê cinco anos para ele postular uma reparação de danos, para processar. E uma vítima como essa tem três. Isso é uma coisa para se rever", afirmou à reportagem da Pública o advogado Antônio Sérgio de Aquino, que representou seis mulheres em ações cíveis.

As clientes de Antônio Sérgio alegam ter sofrido abusos do empresário durante a infância e a adolescência. Dos seis processos, cinco foram considerados prescritos de cara, sem julgamento do mérito ou possibilidade para exposição de provas. Uma das clientes de Aquino, por exemplo, relatou ter sido abusada sexualmente durante oito anos a partir de 1992, quando tinha 11 anos. Mas só denunciou o caso em 2012, aos 30 anos — duas décadas depois, quando a prescrição já havia sido atingida.

Para os meninos e meninas que estão sendo explorados sexualmente, é muito difícil romper o ciclo de violência, diz a procuradora do estado de São Paulo e doutora em direito penal Ana Zomer. "Elas precisam romper várias barreiras, inclusive psicológicas. Infelizmente, não é incomum que a vítima seja desmerecida quando vai fazer a denúncia e/ou procura serviços onde deveria ser acolhida", comentou.

Na reportagem, a Agência Pública acessou 16 processos judiciais de mulheres que acusam Samuel Klein por abusos sexuais. Em pelo menos seis, os fatos não foram julgados, pois as alegações foram consideradas prescritas já de início. No caso de outras 8 mulheres que relataram ser vítimas do empresário, os processos na Justiça foram encerrados após pagamento de valores firmados em acordos entre advogados do empresário e das vítimas. Uma das mulheres ouvidas pela Pública relata ter recebido cerca de R$ 5 mil reais como indenização em um desses acordos. Outras duas fontes teriam recebido R$ 150 mil.

Segundo os relatos, o prazo de prescrição foi um fator determinante para que as acusações contra Samuel Klein permanecessem abafadas e as supostas vítimas impossibilitadas de receber reparação via Justiça. O fundador da Casas Bahia ainda teria se beneficiado da morosidade de ao menos três inquéritos criminais abertos para apurar crimes dessa natureza, nos quais se esquivou das citações judiciais, sem que fossem tomadas medidas mais enfáticas pela Polícia Civil ou pelo MP-SP, até levá-los à prescrição.

Agora, Francielle Reis planeja recorrer da decisão que considerou o caso prescrito, no TJ-SP. "A gente tem testemunhas, a gente tem provas e não tivemos a oportunidade de ser ouvidas até hoje", diz. Para Francielle, uma decisão favorável em seu caso traria principalmente mais condições financeiras para que ela e a mãe pudessem fazer tratamentos psicológicos melhores. "O que aconteceu não vai desaparecer, mas se a justiça for feita, pelo menos eu poderia ter um tratamento". Francielle relata que, desde a época dos abusos, ela e a mãe lidam com depressão e crises de ansiedade.