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Andrea Dip

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Prender Géssica e acolher estátua de Borba Gato é preservar farsa histórica

Géssica Barbosa foi presa sob acusação de participar do incêndio à estátua de Borba Gato, em SP; ela nega qualquer tipo de ligação com o ato - Arquivo
Géssica Barbosa foi presa sob acusação de participar do incêndio à estátua de Borba Gato, em SP; ela nega qualquer tipo de ligação com o ato Imagem: Arquivo

Colunista de Universa

30/07/2021 04h00

Géssica de Paula Silva Barbosa, uma mulher negra, mãe, é presa por ter supostamente participado de um ato que botou fogo na base de uma estátua que homenageia um bandeirante.

Bandeirantes caçavam, escravizavam e estupravam indígenas, negras e negros no século 18 no Brasil. Uma estátua espetada no meio da cidade de São Paulo desde a década de 1960 que, como muitos outros monumentos espalhados pelo mundo, aponta que a história que interessa é aquela escrita pelos opressores. E uma mulher negra, mãe, que diz que nem estava lá é presa.

Sempre importante lembrar, como disse a historiadora e educadora em questões étnico-raciais Suzane Jardim em entrevista ao Brasil de Fato: "A memória negra foi varrida, como a memória indígena foi varrida e ninguém questionou".

Géssica foi detida apesar de ter dito que estava em casa cuidando da filha de 3 anos e não participou do protesto do último sábado (24) junto ao companheiro, Paulo Roberto da Silva Lima, conhecido como Galo, quem — ele sim— se apresentou, abriu as portas de sua casa à uma polícia sem mandado judicial, assumiu a participação e inclusive explicou os objetivos do grupo que fez a ação. "O ato que foi feito no Borba Gato foi feito para abrir um debate", disse ao chegar à delegacia.

E abriu. Tanto que estamos aqui eu, você, todos nós, falando disso, discutindo quem era a figura ali representada e sobre a importância dada às estátuas em comparação às pessoas.

A estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo, é incendiada em protesto - GABRIEL SCHLICKMANN/ISHOOT/ESTADÃO CONTEÚDO - GABRIEL SCHLICKMANN/ISHOOT/ESTADÃO CONTEÚDO
A estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo, é incendiada em protesto
Imagem: GABRIEL SCHLICKMANN/ISHOOT/ESTADÃO CONTEÚDO

Lembrei de outra entrevista, concedida pelo advogado criminalista Joel Luiz Costa à Agência Pública nesta semana sobre a chacina no Jacarezinho, no Rio, em que ele dizia: "Desde o seu início, em 1808, o maior objetivo da Polícia Militar é a proteção patrimonial. Não à toa ela é oriunda da Divisão Militar da Guarda Real da Polícia, que tinha no seu brasão a folha de café de um lado e a cana de açúcar do outro — as grandes riquezas da época que ela devia proteger. Se ela vai proteger patrimônio, ela vai defender quem tem patrimônio em detrimento de quem não tem. Historicamente, a população negra no Brasil é uma população empobrecida, a quem não é dado patrimônio e a quem a polícia não vai servir".

A prisão de Galo e de Biu (Danilo Oliveira) mas principalmente a prisão de Géssica por associação criminosa, incêndio e adulteração de placa de veículo, enquanto a estátua do bandeirante será restaurada por um empresário, protegida por câmeras de segurança e grades (veja, protegida é diferente de vigiada), é um retrato muito fiel e atual do Brasil mas também muito simbólico de como lidamos com nossa história. Não lidamos.

A estátua do Borba Gato (que está inteira, por sinal) não foi a primeira e nem será a última a receber esse tipo de intervenção — apenas no Chile em 2020, ocorreram mais de 300 atos contra monumentos.

Mas a falta de compreensão e a intolerância por parte da opinião pública e de instâncias de poder, às motivações por trás do gesto ocorrido no último sábado, mostram que o Brasil não reviu e não quer rever a própria história, perpetuando uma farsa que enaltece a colonização branca sobre esse território e passa por cima dos povos originários, ignora o sofrimento causado pela diáspora africana e é hoje reforçada pelo fogo na Amazônia, o genocídio impune da população indígena e da população negra, a morte de Marielle, a prisão de Géssica. É a imagem de um bandeirante pegando fogo pela base que incomoda, não um suposto "dano ao patrimônio".

Como disse a historiadora Deborah Neves em entrevista à Agência Pública nesta quinta-feira (29), "Vamos continuar permitindo essa interrupção do debate enquanto tratarmos isso como um dano ao patrimônio e não em um momento de se pensar em que bases e a quem a nossa sociedade continua prestando homenagens".

Enquanto escrevo esta coluna, Géssica está presa, o país está no mapa da fome, temos mais de 550 mil mortos por coronavírus, altos índices de desemprego e o feijão custando cada vez mais caro. Mas a estátua do Bandeirante está sendo acolhida e cuidada.

* Colaborou Guilherme Peters