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Andrea Dip

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Exploração sexual infantil: Até quando Damares vai agir como a tia do Zap?

A ministra Damares Alves decora bolo em uma live que fez em seu Instagram - Reprodução
A ministra Damares Alves decora bolo em uma live que fez em seu Instagram Imagem: Reprodução

Colunista de Universa

21/05/2021 04h00

Ainda me lembro da tarde quente e dos corredores lotados da Vara Única de São Sebastião da Boa Vista, município do arquipélago do Marajó, no Pará. Vejo os rostos das meninas, mães com bebês e homens que esperavam, a poucas cadeiras de distância uns dos outros, pelo julgamento de crimes sexuais.

Uma das meninas que aguardava ali, Mariana*, havia sido estuprada pelo pai desde os sete anos de idade, engravidou aos 12, teve o filho, engravidou novamente aos 13 e só conseguiu escapar da violência reiterada porque teve complicações no segundo parto — alguns médicos suspeitaram da situação e chamaram o Conselho Tutelar. Até os profissionais conseguirem chegar ao local de difícil acesso onde a família morava, o pai já havia começado a abusar também da filha mais nova, na época com sete anos.

Não foi a primeira e infelizmente não seria a última reportagem que eu faria sobre violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil mas certamente o motivo de estarmos ali — eu e a fotógrafa Julia Dolce — tornava tudo ainda mais grave.

O ano era 2019 e a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Bolsonaro, Damares Alves, tinha dito publicamente que meninas eram estupradas no Marajó porque "não usavam calcinha" e sugeriu construir uma fábrica de lingerie na região como medida para "solucionar o problema".

A fala causou grande repercussão e nós, da Agência Pública, fomos até lá para ouvir de quem estava na linha de frente de combate e também das próprias meninas os reais motivos para o alto índice de violência sexual contra crianças e adolescentes no arquipélago. Um pequeno spoiler: o Marajó tem os mais baixos índices de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do Brasil e, no município de São Sebastião da Boa Vista, em 2019, não havia delegado há mais de um ano e nem Defensoria Pública, os Centros de Referência em Assistência Social (CRAS E CREAS) não funcionavam como deveriam e o Conselho Tutelar tinha poucos funcionários e nenhum transporte para se locomover pelos rios que cortam e permeiam a região. E esse nem era todo o problema.

marajo - Julia Dolce/Agência Pública - Julia Dolce/Agência Pública
Meninas na ilha do Marajó, no Pará, onde é alto o número de violência sexual infantil; Damares disse que os abusos acontecem ali porque as meninas não usam calcinha"
Imagem: Julia Dolce/Agência Pública

Me lembrei disso porque o último dia 18 marcou o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes e em cerimônia realizada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a ministra Damares Alves disse: "Esse evento é para mandar um recado para o Brasil: acabou, basta de violência contra a criança. Os números nos assustam. Nossos telefones tocaram 3,5 milhões de vezes no ano passado. No ano de pandemia o número de ligações diminuiu e a gente sabe o porquê: as crianças estavam em casa e não na escola. Aqui fica o registro da preocupação do presidente e da ministra com as crianças que vamos receber nas escolas agora".

Damares se referia às mais de 6 mil denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes registradas pelo serviço Disque 100 nos cinco primeiros meses 2021 e aproveitou a ocasião para defender novamente a educação domiciliar, bandeira do governo Bolsonaro. Mas a fala de Damares vai mais uma vez na contramão do que dizem os especialistas no assunto. Para dar apenas um exemplo, o relatório divulgado pela Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância, na sigla em português) em 2020, dava conta de que 80% dos estupros de vulneráveis (menores de 14 anos) aconteciam dentro de casa e alertava justamente para a dificuldade de se denunciar esses crimes durante o isolamento social.

Como no caso da fábrica de calcinhas, a ministra que diz ter como uma das principais lutas a defesa de crianças e adolescentes "contra a pedofilia" — algo reducionista em si porque leva em conta apenas a doença e não todas as questões estruturais que sustentam a exploração sexual e abusos de crianças e adolescentes no Brasil — dá mais um de seus discursos equivocados.

Mas não são apenas discursos grotescos porque Damares não é sua tia dando opinião no grupo da família do WhatsApp. É uma ministra de Estado e o que diz tem poder de virar ou não políticas públicas e ações efetivas de combate à violência ou de acolhimento às vítimas

Varal de brinquedos de comunidade na ilha do Marajó, no Pará - Julia Dolce/Agência Pública - Julia Dolce/Agência Pública
Em 2019, a ilha do Marajó, no Pará, não contava com nenhum atendimento especializado para vítimas de violência sexual infantil
Imagem: Julia Dolce/Agência Pública

Ao mesmo tempo em que oferece recursos públicos para fazer uma "sala rosa" no IML (Instituto Médico Legal) do Acre para receber mulheres vítimas de violência sexual, os municípios com os mais altos índices de mortes de mulheres no Brasil seguem sem delegacias especializadas. Enquanto fala em construir uma fábrica de calcinhas no meio de um arquipélago, pais estupram suas filhas dentro de casa, e o Conselho Tutelar não consegue chegar porque não tem barco. Enquanto defende a criminalização do aborto mesmo em caso de estupro, uma criança que engravidou do tio precisou chegar ao hospital dentro do porta-malas de um carro para evitar fanáticos religiosos e fazer valer seus direitos.

Quando ouço Damares celebrar a diminuição no número de denúncias de violência sexual e defender que as crianças possam ser educadas em casa e não precisem mais ir à escola — mesmo após o fim da pandemia de covid-19 —, só penso em Mariana e naquela sala cheia de meninas que ficaram tempo demais trancadas em casa com seus pais.

* O nome foi trocado para preservar a identidade da menina; a reportagem citada foi indicada ao prêmio de jornalismo True Story Awards 2021 para a colunista, a fotógrafa Julia Dolce e a Agência Pública