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Ana Paula Xongani

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Eu não quero ser conivente com o trabalho escravo. Você quer?

Nos perfis @mptrabalho @oit_trabalho e @unicamp.oficial, no Instagram, é possível ler informações sobre a campanha de erradicação do trabalho escravo no Brasil - Divulgação
Nos perfis @mptrabalho @oit_trabalho e @unicamp.oficial, no Instagram, é possível ler informações sobre a campanha de erradicação do trabalho escravo no Brasil Imagem: Divulgação

Colunista de Universa

18/02/2021 04h00

Quero começar a coluna de hoje falando de um lugar muito pessoal, sobre um assunto que me é bastante caro, um dos mais delicados e difíceis de abordar, uma vez que, obviamente, eu sou descendente de pessoas que foram escravizadas no Brasil. Então, falar sobre contextos equivalentes a este período em nossa história praticamente me faz sentir uma dor quase física.

No último dia 28 de janeiro tivemos o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo e rolaram várias ações do projeto "Trabalho Escravo Nunca Mais #somoslivres", uma iniciativa conjunta do Ministério Público do Trabalho (MPT), da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Unicamp na erradicação desse crime.

Não sei se todo mundo já parou para pensar sobre isso, mas sempre reflito sobre como é recente o que se convencionou dizer ser o "fim", entre aspas mesmo, da escravidão no país. 133 anos. É muito próximo. Fazendo uma analogia, cabe dizer que se eu esticar os braços, chego rapidamente nesse período, no processo de escravização. Minha avó, uma mulher preta e bastante lúcida, tem 88 anos de idade. Uma rápida conversa com ela e com outras pessoas da família me leva a essa nossa história recente.

Só isso já é muito complexo, né? Pensar que existe um grupo de pessoas que desumanizou pessoas como eu e as escravizou é doloroso demais. E, quando penso que o trabalho escravo ainda é uma realidade no Brasil é algo que me comove muito. Usando do clichê, porque nada mais faz sentido aqui, eu sinto na pele.

Muitas vezes, nos espaços em que acontecem discussões raciais, sobretudo nos espaços de militância, ouve-se que a escravização é um processo inacabado. E, diante da concretude de dados que nos mostram que cerca de 50 mil pessoas foram libertas da escravidão nos últimos 20 anos, esta compreensão fica evidente. Mas, será que a gente consegue entender com clareza o que isso significa e como nossos hábitos podem estar conectados com isso?

Como esta é uma coluna sobre moda e sociedade, e como é também a moda um dos setores que mais escraviza pessoas no Brasil e no mundo, faz sentido abordar sob esta perspectiva. Principalmente porque como eu mesma trabalho com isso, as intersecções todas impactam a minha vida de forma muito intensa.

A gente já falou de vários assuntos aqui, pensou moda de diversas formas e uma coisa que eu sempre trago - ou quase sempre trago - é sobre a importância da gente saber de onde vem a roupa que a gente está vestindo, quais histórias elas carregam nos seus processos de produção, distribuição e venda. Se isso não for uma questão importante para quem me lê por aqui, então nada mais é. Qualquer outro assunto que já tratamos aqui é posterior à violência de quem é escravizado para fazer uma peça de roupa.

E pra mim, tudo parece muito louco porque, ao mesmo tempo que esse assunto está cada vez mais visível, na imprensa, nas redes, em todo lugar, é também crescente o movimento de várias pessoas extremamente esclarecidas e com acesso as informações sobre esta questão não se importando com isso, achando um máximo exaltar os produtos mega baratos de e-commerces que vendem peças a um valor tão inacreditavelmente barato, que obviamente só é possível graças ao negligenciamento de alguma mão de obra.

Então, o que a gente tem? Uma dicotomia muito grande, né? Ao mesmo tempo que tem um monte de informação a respeito, tenho a impressão, principalmente nas redes sociais, de que "tá tranquilo" encher o guarda-roupa com "achadinhos" destas lojas por aí.

Para quem não sabe o que significa o trabalho escravo nos nossos tempos, acho importante explicar: é o trabalho que abraça a mão de obra forçada e/ou tira a liberdade das pessoas das mais diferentes formas.

Seja suprimindo documentos de trabalhadores, isolando-as em territórios "produtivos", fazendo ameaças físicas, psicológicas ou ambas e o clássico: em troca de "moradia" ou "comida", deixa trabalhadores endividados sem qualquer possibilidade de quitação, pagando salários irrisórios para pagamento destas dívidas. Tem também as jornadas intensas que levam ao esgotamento físico e mental.

Tem uma pergunta que a gente precisa se fazer: está tudo bem pra gente vestir trabalho escravo? Até onde vai o limite do que a gente acha aceitável pra usar peças de roupas maravilhosas e baratérrimas?

Se você está lendo esta coluna, é porque tem o privilégio desta informação chegar até você. Lembremos também que a informação é um privilégio. E, a partir de agora, você, do lugar que está, não refletir seu comportamento em relação às roupas que compra passa a ser uma escolha. Uma escolha que muitas pessoas, infelizmente, não têm a oportunidade de ter. Mas, eu tenho certeza que boa parta das pessoas que me lê por aqui pode começar a mudar alguma coisa nesse sentido.

A partir de agora, você sabe que a indústria da moda é uma das que mais se utiliza de trabalho escravo, portanto, procure saber de onde vem a sua roupa, valorize o trabalho de pequenos e médios empreendedores de moda que cuidam para que suas peças sejam produzidas por mãos que recebem tratamento e salário adequados às atividades que desempenham.

Não podemos naturalizar o trabalho escravo nesta ou em qualquer outra indústria.
Eu não quero minhas roupas sujas de violência!

Você quer?

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Para mais informações a respeito da campanha de erradicação do trabalho escravo no Brasil, acompanhe os perfis @mptrabalho @oit_trabalho e @unicamp.oficial ou siga as hashtags #todoscontraotraficodepessoas #trabalhoescravonuncamais #somoslivres no Instagram.