Ana Canosa

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Opinião

Casado, José nunca se permitiu sair da linha, até que conheceu a vizinha

José tem 38 anos e recebeu esse nome em homenagem ao pai de Jesus. Para coroar a narrativa, se casou com Maria (Emília), mulher bonita e cheia de graça, com quem teve seus dois filhos, Mateus e Josué.

Inteligente e colaborativo, de humor ácido, sempre pautou sua vida por princípios religiosos. Acredita na eficiência, na correção, e nunca foi alguém que se permitisse transgredir. No que diz respeito a relacionamentos, sempre se considerou tradicional. Defendia a fidelidade com convicção e jamais buscou seduzir ou criar qualquer tensão sexual fora do casamento.

Até que um dia, andando com o cachorro pelo bairro, uma vizinha recém-chegada puxou papo, caminharam lado a lado, trocaram conversas sobre os pets e ela deixou claro que sempre fazia aquele percurso no mesmo horário, e que passear ao lado dele tinha sido uma "grata surpresa".

Não foi apenas uma gentileza, ele sentiu o interesse dela, o olhar, o sorriso. Foi um farol aceso em meio à penumbra. Fazia muito tempo que ele não se sentia desejado dessa maneira. A esposa, pacata, nunca foi uma mulher de erotismo transbordante. O sexo entre eles acontecia, mas sem grandes novidades. A vizinha despertou nele algo que nem sabia estar adormecido.

Dia seguinte estava lá, fingindo costume, dando a volta com Getúlio —o cachorro—, encontrando a vizinha, jogando conversa fora, passeando. A possibilidade de viver outra história lhe acenava ao longe. Começou a se deixar levar pelas conversas que, com o tempo, passaram a ser excitantes, o jogo da sedução lhe alegrando o dia.

Mudou toda a agenda para levar Getúlio sempre no mesmo horário e ficava extremamente frustrado quando por alguma razão a moça e seu cachorro não apareciam. Praguejava todo dia de chuva, ficando de mau humor até que o sol pudesse favorecer o seu passeio.

Certo dia aceitou o convite para um café no apartamento e se viu nos braços dela, vivendo a luxúria que lhe transbordava pela alma, enquanto os cães uivavam não entendendo nada. Se viu apaixonado. Diria eu que nem tanto assim pela mulher, mas pela versão dele mesmo que emergia ao lado dela: um homem galante, ousado, sedutor, vibrante. Um outro eu que ele estava gostando muito de ser.

Os encontros sexuais foram poucos, interessantes, mas não perfeitos —houve intercorrências, como a ejaculação precoce dele. Mas isso não importava nada —pensou em se separar.

Acontece que logo a mulher se mudou para outra cidade, e eles mantiveram um período de breve contato. Teve um luto pela distância, mas José nunca a esqueceu. O "caso" já dura 4 anos —coloco entre aspas porque vive-se mais na fantasia do que na realidade. A inicial troca de mensagens, os diálogos carregados de desejo e a confirmação da sua importância na vida daquela mulher eram o que o mantinha preso a essa história, um verdadeiro refúgio na imaginação, no entusiasmo que essa "relação" desperta diante da rotina monótona de sua vida.

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Mesmo sem vê-la há mais de 4 anos e com pouco contato por vias digitais —já que ela está namorando e é contida na troca—, ele continua mergulhado em dilema e depois culpa. Quando questionado se desejaria se separar, a resposta é não. Tampouco quer um compromisso com esta mulher, pois ela tem um estilo de vida completamente diferente do seu.

A tensão do dia a dia se dissipou com a distância, mas, ainda assim, ele permanece preso ao conflito interno, ruminando a ideia de que deveriam passar uma semana juntos "para ver como seria". José se alimenta da ilusão, além do reforço do ego —pois quando falam eventualmente há um leve flerte no ar e a lembrança gostosa do frisson que viveram.

E qual sentido para que tudo isso venha acompanhado de uma angústia sem fim? Por que José simplesmente não consegue guardar essa história como uma vivência, com começo, meio e fim? A hipótese plausível é a da dificuldade em negociar com aquela persona rígida e certinha, que descarrilhou, passível a todo tipo de julgamento negativo, como a falta de caráter —seu pior pesadelo. Como ele próprio pode aceitar essa história paralela vivida por 4 anos, na clandestinidade?

Para ele, talvez a única traição justificável seria aquela movida por um amor avassalador, um encontro escrito nas estrelas. Algo grandioso o suficiente para redimir a falha humana. Mas admitir que foi infiel apenas porque desejou, porque quis sentir de novo o frio na barriga, a excitação da novidade, porque cedeu aos caprichos do ego —isso é algo que ele não consegue aceitar. Parece frívolo, irresponsável, nada digno de quem carrega um nome de peso como o dele.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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