Ana Canosa

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Opinião

'Minha ex ficou grávida de um cara e a filha resolveu me chamar de pai'

Eles se conheceram na juventude, namoraram, mas o temperamento intempestivo de ambos tornava a convivência uma experiência difícil, o que os levou ao término. Passaram alguns períodos sem contato, mas vira e mexe a vida se encarregava de os encontrar. Ela engravidou de um homem que pouco quis saber da filha, hoje com 5 anos. Mais uma filha sem pai, o impensável que infelizmente se tornou comum.

Dessa vez, por vontade, se encontraram três anos atrás, quando ele precisava de alguém para passar os pontos da sua carta de motorista. Para ele, um tipo de pedido difícil de fazer, nem tanto pela transgressão, mais pela vergonha de provocar incômodo aos outros. Não é exatamente um lorde, mas tem consciência plena de direitos e deveres. Então, só alguém que pudesse aceitar a sua verdade sem julgamentos. Pensou nela, assim meio de supetão, foi seguindo a intuição.

E foi ali, em um Poupatempo da vida, que a partilha e a confiança fizeram morada definitivamente na existência de ambos. Cada um elege o imprescindível na sua escala pessoal de valores. Tiveram um rápido flashback, que reafirmou a dificuldade de convivência, mas daí eles já tinham se reconhecido como apoio um do outro. E tinha aquela menina, de olhos curiosos e expressivos, que se jogou nos braços dele, um afeto nunca sentido - despertando outro sentido na vida. Passou a conviver com a garota, sendo apoio para aquela mãe solo, o homem com quem se pode contar. Por muitas vezes a recebe, depois que ela telefona, pedindo para dormir na sua casa. A sedução malandra e genuína das crianças, amolecendo os corações.

Pois que agora a criança resolveu chamá-lo de pai, um título que ele nunca sugeriu ou ostentou. "Gosto quando você me chama de Fred" - de pronto respondeu. Mas a menina ignorou, a fome de pai gritando de suas entranhas - não serve nome próprio, não serve tio. Vai ver que é a comparação na escola - quem sabe, a menina sem pai precise de um.

Como é que pode, a vida dando dessas, a filha que nunca tiveram, nem mesmo sonharam. Não é padrasto, nem pai, nem namorado. Não é seu direito, tampouco dever, mas parece que o amor vai se esgueirando e só espera que a gente coloque fermento, sem preocupação com a forma - a fim que transborde.

Pergunto como se sente ao ouvi-la solicitar que legitime a paternidade, respondendo ao seu chamado infantil. Ele me diz que é estranho, uma responsabilidade que a priori não é sua, um peso afetivo que só quem tem filhos sabe como é. Por outro lado, tem esse sorriso que insiste em se formar no rosto, a alegria de quem está apaixonado, dessa vez com o chamado de uma força ancestral, difícil de negar.

Já foi perguntado na rua se era o pai: "Pai é quem ama", respondeu. Não tem DNA, pensão ou guarda compartilhada - somente o afeto que nasce das necessidades espontaneamente atendidas. Está feito o laço, o improvável bordando com singeleza uma tessitura da vida.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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