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Ana Canosa

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Há traços de personalidade que podem definir infiéis e traídos?

Infidelidade acontece mesmo em casamentos felizes - Getty Images/iStockphoto
Infidelidade acontece mesmo em casamentos felizes Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista de Universa

29/05/2021 04h00

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Apesar das tentativas sociais, culturais, religiosas e legais de desencorajar o sexo extraconjugal sem anuência da parceria, a infidelidade continua sendo uma prática comum. O maior site de relacionamentos extraconjugais do mundo, a Ashley Madison, divulgou o incrível número de 5,5 milhões de novos registros de homens e mulheres no último ano, representando uma média de mais de 15.200 novos membros ingressando diariamente em 2020.

O tema é difícil de ser estudado, já que esbarra em questões morais e pessoais e com frequência provoca dor e vergonha. É difícil para os pesquisadores isolar e quantificar muitas variáveis, como as motivações pessoais, contextos específicos, a sensação de intimidade sexual e emocional, traços de personalidade, qualidade da relação conjugal. As pesquisas de prevalência do fenômeno ao redor do mundo trazem índices muito díspares, que vão desde 1,2% a 85,5%, a depender da população. Quanto mais se entende a infidelidade de maneira ampla, como por exemplo 'flertar com alguém", as taxas serão obviamente maiores. O que sabemos é que, de qualquer maneira, a infidelidade é uma realidade que acontece mesmo em contextos de casamentos felizes.

Grande parte da literatura concentra-se nas características da pessoa infiel e alguns estudos utilizam um modelo de avaliação de 5 características de personalidade: Abertura (pessoa imaginativa e aventureira), conscienciosidade (organização e autodisciplina), extroversão (sociável), amabilidade (compaixão e cooperação) e neuroticismo (instabilidade emocional e sofrimento psicológico). Baixos níveis de amabilidade (compaixão, cooperação) e de conscienciosidade (organização, disciplina, comprometimento) estão associados com maior probabilidade de infidelidade, como também pessoas extrovertidas podem ser mais tentadas a "trapacear" se estiverem insatisfeitas com o relacionamento. Instabilidade emocional e sofrimento psicológico (neuroticismo), também é uma característica de personalidade associada com a infidelidade.

No entanto, um estudo recente, publicado em 2020, avaliou as características de personalidade das pessoas a partir da maneira que classificavam suas parcerias, e os pesquisadores correlacionaram os resultados com episódios de infidelidade que porventura tivessem ocorrido durante o casamento. A conclusão foi que ter uma parceria conscienciosa, que assume responsabilidades, é confiável, madura e comprometida com o cotidiano e com o relacionamento, é fator protetivo contra a infidelidade. O dado chocante, mas que infelizmente faz sentido, é que ter uma parceria amável aumenta a probabilidade da infidelidade. Ou seja, se tudo o que desejamos é alguém atencioso, afetivo e complacente, como é que essas características podem justamente facilitar a infidelidade do(a) parceiro(a)? Os pesquisadores hipotetizam que quem é útil, caloroso, de "coração mole" e altamente compreensível pode tender a perdoar a infidelidade e colocar a necessidade de manutenção da família e equilíbrio emocional acima de suas próprias dores. Sendo assim, o(a) parceiro(a) acaba abusando da boa vontade alheia.

A meu ver, o problema está bem longe em ser amável, mas na associação entre parcerias díspares. O saudoso psicanalista Flávio Gikovate já alertava para a dinâmica entre casais cujos parceiros ostentavam de um lado generosidade excessiva e do outro, egoísmo, reforçando cada qual um lugar na relação que é retroalimentado: para uma pessoa manter seu egoísmo precisa de um generoso e vice-versa. A conclusão a que chego é que um grande descompasso nos traços de personalidade pode estar associado à infidelidade.

Embora a infidelidade tenha múltiplas motivações, sendo traços de personalidade apenas uma delas, esses achados podem ajudar a identificar casais em risco e implementar medidas preventivas. Para você, que é amável, antes de se questionar e querer transformar seu coração em pedra, aconselho buscar parcerias também afáveis, já que as interações entre as personalidades de ambos os parceiros tendem a influenciar as escolhas individuais. O mundo precisa de amorosidade. Os egoístas, que lutem. Cansamos das inversões de bons valores.