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Ana Canosa

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Dificuldade de lidar com luto pode prejudicar os relacionamentos amorosos

Colunista de Universa

23/03/2021 04h00

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Flávio, de 49 anos, tem uma história de vida marcada por grandes perdas. Sua mãe faleceu pouco tempo antes da data do seu casamento, em um acidente, quando iam entregar alguns convites para a cerimônia. Na ocasião a noiva quase morreu também. A relação deles não suportou as dificuldades emocionais que surgiram após o ocorrido e não houve casamento. Para piorar, a irmã de Flávio foi acometida por uma profunda depressão e ele, como filho mais velho, passou a assumir todas as responsabilidades com a família. Tempos depois a irmã dele também morreu, e Flavio sofreu mais uma perda.

Pessoas expostas a grandes sofrimentos e que têm que assumir responsabilidades familiares, por vezes não têm tempo para viverem seus lutos. Às vezes há uma junção entre uma característica da personalidade com uma necessidade que é abraçada como defesa para evitar a dor. Nenhuma posição é fácil: nem a de quem foge do sentimento de orfandade, abraçando a tudo e a todos, nem de quem mergulha nele e não consegue sair.

Com pouca ajuda dos irmãos para dividir a sobrecarga, inclusive com os cuidados do pai com Alzheimer, Flávio passou mais de uma década sem nenhum relacionamento afetivo-sexual. Para complementar o cenário desértico, como tem boa condição financeira, ele começou a desconfiar que as pessoas se aproximam dele para "tirar proveito", o que fomenta mais ainda a solidão em que se encontra.

Foi aí que ele conheceu Paula, que tem 45 anos e é enfermeira. Ela foi contratada para ajudar nos cuidados do pai de Flávio e, o convívio dos dois fez nascer uma amizade. Ela ficou sensibilizada com a história dele, seu sofrimento, sua jornada solitária. Um prato cheio para quem adora cuidar.

Algumas pessoas se atraem por outras, menos pelo ímpeto físico, mais pela complementariedade da função que podem exercer na vida do outro. O difícil é que, essa dinâmica pode aprisionar cada qual em um papel: Paula, a cuidadora, Flávio o solitário, e a falta de engajamento e equilíbrio em outras esferas da vida em comum, entornam o caldo.

Quando se percebeu envolvida emocionalmente, Paula pediu demissão, a fim de evitar conflitos éticos, afinal de contas, onde se come o pão não se come a carne. Mas ela também já se percebia sofrendo calada, e achou que o distanciamento funcionaria. Mas eles não conseguiram se afastar, pois o amor já tinha brotado naquele encontro. Em um dia que displicentemente saiam como amigos, acabaram se engalfinhando deliciosamente e finalmente tiveram uma relação sexual repleta de desejo, excitação e orgasmos.

A partir disso, passaram a se encontrar com mais frequência, quando estavam separados, trocavam mensagens amorosas e como bons amantes faziam projetos juntos. Flávio sonhava com situações de convivência mútua e apaixonadamente as dividia com Paula.

Mas, como a vida emocional não é essa linha contínua, as defesas de Flávio passaram a operar, toda vez que terminavam o sexo. Como se o gozo de prazer anunciasse a morte, e não a vida, ele mergulhava nas conjecturas sobre ter uma família, e para tal, encontrar uma mulher que tivesse o mesmo nível financeiro que ele - que não era ela.

É bem mais fácil conviver com alguém que esteja aparentemente "pronto" e cumpra vários critérios de seu check-list, do que lidar com os conflitos e fantasmas que podem surgir a partir das diferenças. Mas às vezes, as pessoas se apegam a uma crença para disfarçar o medo que têm de se tornarem vulneráveis diante do amor, que é experimentado com medo e desconfiança.

Atordoado com todas as responsabilidades familiares, Flávio talvez não consiga viver em compromisso amoroso com alguém. Dinheiro é meramente uma desculpa, afinal, além de Paula ser independente, ao quase meio século de vida, ele já deveria ter descoberto que o importante na vida é ter saúde e usufruir do que se construiu, ao lado de quem nos faz bem.

Vivendo na corda-bamba diante da labilidade afetiva dele, que ora colocava Paula em seus planos e se mostrava carinhoso, para logo em seguida excluí-la, e se tornar arredio, Paula decidiu se afastar de vez. Ela percebeu que o mecanismo repetido de excitar e frustrar é fomento para a loucura. No entanto, embora ela esteja ciente do quão tóxica essa relação estava se tornando, ainda se mantém um tanto aprisionada na necessidade de ajudá-lo, ocupando parte de seu tempo preocupada com ele.

O que Paula não sabe, é que abrir mão dessa postura cuidadora é a única forma de Flávio lidar com seu próprio desamparo e decidir fazer alguma coisa por ele mesmo. O estilo de apego ambivalente, contrapõe duas necessidades distintas: a de encontrar o aconchego afetivo com o de resistir a ele. Se ela sempre está a lhe socorrer, tampouco ele entrará em contato com o luto que está acostumado a reviver, só para chegar perto e ao mesmo tempo fugir dele. Resistir é um aprendizado importante para ela também.