Opinião

Quem é a mulher na banheira de Hitler (e o judeu que a fotografou)?

Em algum momento do filme 'Lee', dirigido por Ellen Kuras e disponível no Prime Video a partir desta semana, eu comecei a me perguntar por que o Andy Samberg olhava para Kate Winslet daquele jeito.

Antes de entrar na minha análise, vale lembrar que 'Lee' conta a história de como Elizabeth Miller saiu de desfiles de moda na Europa por volta de 1930 e se tornou fotógrafa na linha de frente da Segunda Guerra Mundial.

Enquanto assistia à cena de Kate Winslet na banheira refazendo a famosa foto de Lee, achei que fosse coisa da minha cabeça, que estava colocando peso demais em olhares, sorrisos, abraços, ou no jeito que Samberg a deitou na cama quando ela falou, bêbada e aos prantos, que o mundo é um lugar perigoso para meninas.

Mas havia alguma coisa diferente na intimidade entre a protagonista — a fotógrafa Lee Miller (e vale dizer que Kate Winslet, excelente como sempre, foi indicada ao Globo de Ouro pelo papel) — e David E. Scherman, o amigo e colega de profissão que a acompanhou até alguns dos cantos mais sombrios do século 20. Algo oculto, nas entrelinhas.

Então, fiz o que qualquer pessoa faria depois de ver uma cinebiografia: caí numa espiral da Wikipédia que durou uma madrugada inteira. Abri uma nova aba. Joguei "Lee Miller" no Google.

Primeiro, surgem as fotos com Man Ray, de uma vida passada: musa e parceira criativa do surrealista, Miller viveu em Londres e Paris, cercada de artistas e boêmios. Trabalhou como modelo e fotógrafa de moda, apareceu num filme do Cocteau e foi pintada por Picasso seis vezes. Foi uma das primeiras it girls do século 20.

Mas Lee Miller era mais que musa. Ela foi uma das poucas mulheres correspondentes de guerra na linha de frente da Segunda Guerra Mundial. Para a revista Vogue, fotografou e escreveu sobre hospitais bombardeados, crianças abandonadas, Saint-Malo em ruínas e os campos de concentração recém-libertados. Muitas das imagens de Dachau foram fotografadas por ela.

E aí, é claro, temos a emblemática foto da banheira. É sobre ela que vou escrever por um tempo.

Como foram parar na banheira de Hitler

Kate Winslet é Lee Miller em filme 'Lee'
Kate Winslet é Lee Miller em filme 'Lee' Imagem: Divulgação
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Miller é a mulher loira que toma um banho quente na casa de Adolf Hitler, com expressão de esfinge, botas sujas apoiadas na banheira e um retrato do ditador convenientemente posto sob a cerâmica. A lama escura que mancha o tapete branco é de sua missão anterior: fotografar e escrever sobre os horrores dos campos de concentração na Alemanha. A mensagem? Estamos vivos, o Führer está morto e o diabo que o carregue.

Na carta que escreveu para sua editora, Lee conta que o clique surgiu não como piada ou celebração pelo fim do Terceiro Reich. Na verdade, ela e seu colega dirigiram de Buchenwald até Dachau e Munique por 14 dias, sem banho e com pouca comida, seguindo o rastro de devastação do regime nazista. Não havia sacada ou estratégia pela foto perfeita: no fim do dia, eles só queriam um banho quente.

Esse colega — o coautor da foto da banheira — é David E. Scherman, interpretado no filme por Andy Samberg (sim, aquele Andy Samberg, o detetive imaturo de Brooklyn Nine-Nine, aqui surpreendente na atuação mais sóbria de sua carreira). Fotógrafo da Life, Scherman tinha um senso de humor herdado de sua paixão pelos Irmãos Marx e um talento para inventar o clique perfeito ao invés de esperá-lo aparecer.

Em muitos sentidos, Miller e Scherman eram opostos — ela, inquieta, explosiva, cáustica, próxima dos quarenta, uma cidadã do mundo sem endereço que se recusava a ser domada; ele, nove anos mais jovem, era um rapaz de Manhattan que tocava ocarina e amava ópera. Era estável, confiável, contido e engraçado, apesar da depressão que o perseguiu por décadas. Mas a parceria deu certo.

Inclusive, há uma versão menos famosa da foto da banheira: Scherman, por Lee Miller. Magro, cansado, talvez ciente da ironia mórbida de ser um judeu ligando um chuveiro quente na casa de Adolf Hitler, faz uma graça pra câmera, como quem fala: "é mole?!"

Alianças, cigarros e saúde mental durante a guerra

Andy Samberg e Kate Winslet interpretam Lee Miller e David E. Scherman no filme 'Lee'
Andy Samberg e Kate Winslet interpretam Lee Miller e David E. Scherman no filme 'Lee' Imagem: Divulgação
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Para revelar um retrato mais vívido de Miller e Scherman, conversei com Rowland Scherman, sobrinho de David e fotógrafo que clicou alguns dos momentos mais célebres da cultura americana. Rowland esteve presente no Festival de Woodstock e foi o autor da foto do disco 'Bob Dylan's Greatest Hits' — pela qual ganhou o Grammy de Melhor Capa em 1967.

Para ele, o longa não capturou o peso da parceria dos dois — e nem o senso de humor de seu tio, que em 'Lee' aparece mais sério. "Eu sempre quis ver um filme dos dois viajando Europa afora. 'Lee' não foi o caso". Mas afirma categoricamente: "Meu tio David teve sorte de conhecer Lee e ela teve sorte de conhecê-lo".

Lee Miller e David E. Scherman dividiram apartamento antes e durante a guerra. Ele a encorajou a tentar credenciamento como correspondente de guerra pela Vogue americana — a sucursal britânica não mandava mulheres para o front.

Os dois trocaram filmes, câmeras, histórias e silêncios. Às vezes, eram colegas. Às vezes, amantes. Dois rebeldes no front, sem rótulos ou amarras - a urgência da guerra e a iminência da morte faziam a monogamia parecer bobagem.

Ele editava seus textos quando ela não conseguia mais enxergar as palavras. Ela ajustava a luz, quando a mão dele tremia. Davam risada apesar do cansaço e do medo, tentavam driblar os censores e inventavam trocadilhos engraçadinhos para passar o tempo. Ela o chamava de "Davey." Ele a chamava de "Lee-Lee."

Nas fotos da época de guerra, Lee é sempre fotografada por Scherman como uma criatura viva, pensante, em movimento: negociando cigarros com soldados; em ação, suada, com coturno e chapéu; ou pronta para a estrada, com o que ele chamou de essenciais: cigarro, vinho e gasolina. No lugar do carão de musa, cenho franzido pelo sol.

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Talvez Scherman fosse uma das únicas pessoas capazes de entender por completo — antes mesmo do termo estresse pós-traumático — o impacto da guerra na saúde mental de sua companheira, responsável por testemunhar, fotografar e escrever sobre um dos períodos mais nefastos da história. Carolyn Burke, biógrafa de Miller, conta que ele ofereceu amor, conforto e mentoria enquanto ela escrevia sobre guerra — um processo que Scherman definiu como "passar o cérebro num moedor de carne".

Com o fim da guerra, Lee, inquieta, traumatizada e viciada em álcool e pílulas, se recusou a parar e começou uma peregrinação pelo Leste Europeu, cobrindo o pós-guerra. David foi chamado de volta para Manhattan, onde se tornou editor da Life. De lá, enviou um telegrama: "vai pra casa".

Mas, como sabia que era impossível parar Lee Miller, ele também transferiu dinheiro e as chaves de seu Chevrolet 1937.

Romance nas entrelinhas

Kate Winslet interpreta a fotógrafa de guerra Elizabeth Miller em 'Lee'
Kate Winslet interpreta a fotógrafa de guerra Elizabeth Miller em 'Lee' Imagem: Prime Video/Divulgação

O último trabalho de David Scherman em vida foi assinar o prólogo de Lee Miller's War, o compilado de reportagens, cartas e diários de guerra da fotógrafa. A 'inquietação' de Miller, ele contou, "era uma curiosidade insaciável de ver o que havia depois da próxima esquina, de se reinventar, de examinar tudo a fundo e, por fim, descartar — uma vida nova por ano, por mês, por dia." Lee era "brilhantemente cáustica, [...] uma artista completa e uma completa palhaça"; o mais próximo que Scherman conheceu de "uma mulher da Renascença no século 20."

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Existem histórias de amor entre fotógrafos, autores e correspondentes de guerra que ficaram famosas. Robert Capa e Gerda Taro, por exemplo — jovens idealistas, registrando a Guerra Civil Espanhola até que ela morresse tragicamente, esmagada por um tanque (Capa, por sua vez, morreu ao pisar numa mina na Indochina, em 1954). Ou Ernest Hemingway e Martha Gellhorn, que se conheceram no mesmo conflito e brigaram em todos os continentes — história retratada no filme Hemingway & Martha, com Clive Owen, Nicole Kidman e Rodrigo Santoro.

Mas existem as histórias que não viraram mito. Continuaram como nota de rodapé.

A minha foto preferida da parceria Miller/Scherman não é uma foto de guerra.

É Lee Miller aos quarenta. O cabelo curto. O rosto sem retoque. Deitada no chão, em Londres, ela olha para David através do espelho. A imagem se multiplica. Lee, mais velha. Linda. Vulnerável, mas forte. Profundamente humana.

É possível ver a foto nos Arquivos de Lee Miller (Lee Miller Archives), hoje administrados pelo filho da fotógrafa, que preservam não apenas sua obra, mas também sua intimidade. As fotografias que David tirou dela depois da guerra — velada, introspectiva, fragmentada em espelhos — falam mais do que qualquer legenda.

E é significativo que os Arquivos de Lee cuidem também não só do espólio de Roland Penrose, o artista surrealista com quem Lee se casou, mas também de David E. Scherman. Essas histórias, como suas vidas, estão entrelaçadas. Complicadas. Inclassificáveis.

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Scherman se casou com a pesquisadora Rosemarie Redlich no final da década de 1940, com quem viajou o mundo e escreveu livros. Teve dois filhos, John e Tony. Foi o funcionário mais longevo da Life. No fim de sua vida, descobriu um novo talento: construiu vinte casas para seus amigos.

Lee, uma mulher da renascença, se tornou Lady Penrose e virou uma chef de cozinha premiada. Sua nova casa, um rancho na Inglaterra, virou a residência dos artistas e intelectuais europeus que a guerra não tinha levado. Quando se tornou mãe, escondeu todas as fotos e textos no sótão e nunca mais falou sobre a guerra.

Lee morreu em 1977. David permaneceu em sua vida até o fim.

E isso me desarmou.

Não foi um romance épico, cheio de marcos e declarações. Foi algo que viveu nas entrelinhas. Nos telegramas. Nas fotos sem autoria, classificadas como "Miller/Scherman". Em como David viu Lee como aliada, profissional, amiga e companheira, não ameaça ou posse. De como ele ajudou a abrir caminhos num mundo tão machista. Na gentileza com que ele a fotografou quando o mundo já não a achava mais uma musa.

Ali estava uma história que não cabia nos moldes tradicionais. Que a História não sabia como encaixar, então relegou ao rodapé. Não era a história de um casal. Era a história de dois seres humanos que se viram de verdade.

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Eu reparei como David olhou para Lee.

E, desde então, não consegui mais desviar o olhar.

Opinião

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