Topo

Cristina Fibe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que abusadores falam sempre a mesma coisa após serem denunciados?

Cristina Fibe

Colunista de Universa

18/05/2023 04h00

Proponho um exercício de adivinhação. Conto um caso e você tenta descobrir de quem estou falando.

Ele é famoso e tem milhares de seguidores nas redes sociais. Bem-sucedido em sua profissão, é respeitado por seus pares e visto como um homem simpático e "de família".

Funcionárias da empresa em que ele trabalha apontam, para seus superiores, que ele tem o hábito de tocar nas colegas mulheres sem consentimento.

Elas ouvem que se trata de "brincadeira" e que ele "é assim mesmo".

As mulheres ficam com medo de denunciar o colega, cujo status é superior ao delas.

Uma das vítimas relata que o homem, além de importuná-la, passa a desqualificá-la profissionalmente. Ela procura o RH.

A primeira denúncia puxa outra; mais uma mulher toma coragem para contar o que sofreu.

A empresa afirma estar do lado delas, mas se atropela nos protocolos de atendimento, deixa as mulheres expostas e não impede o contato de denunciantes e denunciado.

A defesa nega o assédio: diz que as acusações são inverídicas, fruto de desentendimentos profissionais, inventadas para manchar a reputação de um homem íntegro.

O acusado fala em revanchismo e vingança e convoca testemunhas para retratá-lo como uma pessoa respeitosa e excelente profissional. Também argumenta que a investigação interna da empresa e a área de compliance não identificaram reclamações anteriores.

As mulheres são desacreditadas. Chamadas de loucas e vagabundas, enfrentam retaliações no trabalho.

As denúncias afetam a saúde mental e física das vítimas.

Ele usa as redes para dizer que sempre foi um homem que respeita seus colegas. Diz que "é devastador saber que minha carreira e vida pessoal estão em risco pelas informações que circulam na mídia".

Para montar o roteiro acima, segui o que aconteceu no departamento de jornalismo da TV Record. O acusado foi o ex-repórter especial Gérson de Souza, de 64 anos, condenado em primeira instância a dois anos e meio de prisão por importunar sexualmente suas colegas.

São muitos detalhes, mas que fazem parte de um script comum. Por isso, dá a impressão de que poderia se tratar de qualquer caso de assédio sexual noticiado atualmente.

Neste, a condenação, após quatro anos de espera, serviu para as vítimas constatarem que, para a Justiça, não são loucas, segundo elas mesmas disseram às jornalistas Camila Corsini e Camila Brandalise.

Em casos de crimes sexuais, é praxe que as vítimas sintam vergonha, culpa e medo. Quando se enchem de coragem para denunciar, são desacreditadas e revitimizadas, às vezes dentro das delegacias, na imprensa e até nos tribunais.

Quando o homem é famoso e querido pelo público, fica mais difícil ainda. Há uma inversão do discurso, e elas são apontadas como criminosas agindo por vingança e loucura.

Não são loucas, não agiram por vingança, e mesmo um homem tido como brincalhão, casado e com filhas é capaz de assediar colegas de trabalho. O abusador não tem cara, ele não se anuncia. E esse roteiro de contra-ataque está começando a ficar óbvio demais.