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OPINIÃO

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Justiça autoriza aborto em caso de 'sofrimento psicológico' e atualiza lei

Mulheres se manifestam em audiência pública sobre legalização do aborto, em 2018, em frente ao STF; foi a última vez que Brasil discuti possíveis avanços na lei - Getty Images
Mulheres se manifestam em audiência pública sobre legalização do aborto, em 2018, em frente ao STF; foi a última vez que Brasil discuti possíveis avanços na lei Imagem: Getty Images
Juliana Reis

Colaboração para o UOL

24/05/2022 04h00

No dia 6 de maio, um juiz de Minas Gerais, contrariando parecer do Ministério Público, autorizou um abortamento de feto diagnosticado com megabexiga, uma malformação fetal que atinge um em cada 1.500 nascituros (fetos). E decidiu isso considerando o "sofrimento psicológico" da mãe e a "inutilidade da exposição ao risco de sua vida ou de sequelas à sua saúde, ainda que com uma mínima expectativa de vida".

A decisão, que atualiza a interpretação dos direitos da mulher na lei brasileira, levantou as torcidas desse mal jogado Fla-Flu de direitos versus antidireitos. Não à toa mereceu manchetes de jornais, de diversas vertentes editoriais, que se centravam, cada um a seu gosto: uns na doença, outros no tempo gestacional avançado de seis meses (22 semanas) e no valor inegociável da vida. E, felizmente, no "sofrimento psicológico" e nos riscos de sequelas à saúde da gestante.

No caso em questão, o diagnóstico de megabexiga do feto foi estabelecido de modo precoce, na 12ª semana da gestação. Mas somente depois do ultrassom realizado com 22 semanas, mostrando a piora do quadro que já comprometia a caixa torácica e os pulmões, o casal de pais em porvir decidiu dar entrada com um pedido de interrupção de gravidez na Justiça. O estigma em relação ao aborto tem a ver com esse delay.

Na ação cotidiana da operação Milhas Pela Vida das Mulheres —que as ajuda a acessarem seus direitos reprodutivos, incluindo interrupção legal de gravidez—, já acolhemos os pedidos de socorro de dezenas que, diante de diagnósticos de (risco de) malformações fetais, optam imediatamente por postergar o projeto de maternidade e, em segredo, viajar para fora do Brasil para interromper a gestação.

A todas elas, oferecemos a possibilidade de ir buscar na Justiça brasileira a autorização para fazê-lo aqui mesmo no país, juntos de seus companheiros e de suas famílias. E, a cada dia que passa, mais mulheres aceitam enfrentar o judiciário. Ao menos em um primeiro momento, muitas delas desistem de aguardar a procrastinação e embarca após uma derrota em primeira instância.


No mesmo dia 6 de maio da decisão da Justiça autorizando o pedido de aborto em Minas Gerais, a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher na Câmara dos Deputados emitiu parecer favorável ao natimorto Estatuto do Nascituro, por meio de seu relator, deputado Emanuel Pinheiro Neto (MDB-MT), declarando que "o nascituro, assim, é fim em si mesmo e sujeito de direitos, sendo efetivamente a pessoa em situação mais vulnerável na relação com a mulher devendo ele, como qualquer criança, receber absoluta prioridade nos termos da Constituição Federal."

O autor, homem branco e cristão, do MDB, é do mesmo partido que a única (por ora) pré-candidata mulher à presidência da república, Simone Tebet, a mesma já declarou em sabatina UOL/Folha ser feminista mas contra o aborto, "salvo nos casos previstos na constituição brasileira". Se eleita, Simone vai precisar se entender com a sua bancada, já que a fala de Pinheiro contradiz a dela.

O direito civil brasileiro é natalista, o que significa que os indivíduos têm seus direitos assegurados pelo Estado desde o nascimento em vida e até a morte (compreendida como cessação de atividade cerebral).Também era assim em El Salvador até 1998, quando um projeto de lei gêmeo do nosso Estatuto do Nascituro foi concebido, e não abortado, pelos legisladores pós-revolucionários dessa pequena república da América Central.

Desde sua entrada em vigor até hoje, 182 mulheres foram perseguidas judicialmente por terem sofrido emergências obstétricas durante a gestação, 65 delas foram encarceradas (25 delas mães de 56 crianças que cresceram privadas da presença materna), 17 delas ainda estão presas, cumprindo penas de até 40 anos de prisão, sendo que a última condenação foi há poucos dias, em 10 de maio.

Se aprovado no Brasil o Estatuto do Nascituro abre caminho para alterar o nosso Código Penal e dar adeus às situações permitindo o aborto legal às vítimas dos estupros que ocorrem a cada sete minutos no Brasil --que já é que mal e porcamente garantido, em apenas 3,6% dos mais de 5.000 municípios brasileiros.

Estaríamos retrocedendo em matéria de direitos sexuais e reprodutivos a 1939 e, sendo, assim sendo, o juiz mineiro estaria cometendo um crime ao autorizar a interrupção da gestação do feto portador de malformação fetal incompatível com a vida extrauterina.

A nova legislação colocaria à margem da lei todos os ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) que, em 2012, tornaram legal o aborto em casos de anencefalia. Colocaria até celebridades, esposas de famosos e influencers que tanta empatia geraram em meio a seus followers ao compartilhar sobres os abortos espontâneos que sofreram —isso também seria alçado a crime de negligência contra vulnerável.

E faria da cristã Simone Tebet uma quase subversiva, defensora de direitos constitucionais das mulheres brasileiras.

Alguém já disse que o Brasil é uma piada pronta. Mas esses dois eventos, ocorridos no mesmo dia do mesmo país, demonstram que estamos mais próximos de um trágico e empacado Fla-Flu, prorrogado ad eternum e condenado a um placar civilizatório zero a zero, sem qualquer perspectiva de desenvolvimento humanista de nossa sociedade.

A nós, cabe entrarmos em campo para chutar os pênaltis. Já passou da hora de falar de aborto.