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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Robinho acabou para mim, e vivo o luto pela perda de alguém tão querido'

Robinho, jogador de futebol condenado a nove anos de prisão na Itália por estupro coletivo - Thomas Santos/AGIF
Robinho, jogador de futebol condenado a nove anos de prisão na Itália por estupro coletivo Imagem: Thomas Santos/AGIF
Anita Efraim

Colaboração para Universa

20/01/2022 09h31

Dia destes decidi organizar todas as minhas camisas do Santos. Cada uma traz uma memória diferente, um título, um sentimento... A mais antiga delas, de 2002, tinha nas costas meu nome, Anita, e um número: 7. Quando bati o olho naquilo, senti um vazio e uma decepção difícil de serem descritos.

A notícia mais recente todos sabem: Robinho foi condenado em última instância a nove anos de prisão pelo crime de estupro coletivo. Não cabe mais recurso. Para a maioria das pessoas de bom senso, a condenação representa um mínimo de justiça —mesmo que dificilmente ele cumpra a pena. Mas, para quem é santista, pode ser também a sentença definitiva do luto, pela perda irreversível de um ídolo.

É difícil encontrar um jogador de futebol que seja um grande exemplo dentro e fora dos campos. Pegando Sócrates como referência, era um grande atleta, fazia o olho do torcedor brilhar com a bola no pé, foi o representante de importantes valores democráticos e, ao mesmo tempo, era alcoólatra —o que pode ser visto como mau exemplo, mesmo sendo uma condição clínica. Ou mesmo Marcos, herói alviverde que, hoje, expressa opiniões controversas até sobre vacinação.

Mas a verdade é que, quando um jogador marca a nossa vida enquanto torcedor, a gente sempre tem um pano para passar, quase sempre dá para aliviar a situação. Ninguém vai apagar Sócrates da vida do corintiano ou Marcos da memória de um palmeirense.

Mas um estupro? Um estupro, não. De jeito nenhum.

Robinho mudou a história do Santos. Pergunte aos santistas que você conhece: qual título foi o mais importante, a Libertadores de 2011 ou o Brasileirão de 2002? Chutaria que nove em cada dez diriam que o Brasileiro de 2002 —aquele título heroico, com os Meninos da Vila em campo que fez o Santos Futebol Clube renascer. Pessoalmente, não consigo ver os gols daquele dia sem que meus olhos se encham de lágrimas. Aquele título mudou os rumos da história do Santos. Neymar é mais jogador do que Robinho foi, mas, para o Santos, Robinho representou mais do que Neymar.

Representou. No passado.

Foi naquele dia que Éder Luiz, na rádio Transamérica disse a célebre frase: "Um pai santista olhando para o filho, e hoje ele não precisa explicar para o filho o que é ter amor por essa camisa. É fácil de entender". Era o fim da fila.

Aquela campanha me definiu como santista. Minha mãe e minha irmã torcem para o São Paulo. Meu pai e meu irmão, para o Santos. Na cabeça de uma criança de 7 anos, fazia sentido seguir "as mulheres da família", mas Robinho e Diego subverteram a lógica. Foi naquele jogo entre Santos e São Paulo, no Morumbi, em que Diego fez o gol e comemorou subindo no símbolo do tricolor. O Santos acabou perdendo por 3 a 2 e, ali, eu tive certeza: nasci para ser santista.

De lá até hoje, aguentei muitas derrotas. Algumas doídas demais. Deu para superar todas. Mas um estupro? Um estupro, não. De jeito nenhum.

O crime cometido por Robinho, hoje um condenado pela Justiça, machucou de forma aguda meu coração santista. Amei em 2002, amei a volta em 2010 e, quando o crime veio à tona, fui obrigada a aprender a parar de amar. Robinho acabou para mim e, até hoje, é como se eu vivesse um processo de luto pela perda de alguém tão querido. Porque o futebol tem dessas, mexe com nossos sentimentos de forma tão profunda que um jogador parece alguém da família.

Se eu queria que o ex-camisa 7 terminasse a carreira no Santos? Claro que queria! Desde que ele não houvesse cometido um crime tão violento.

E veio, então, a tentativa da antiga diretoria do Santos de tentar trazê-lo de volta para o que seria "a última pedalada". Naquela altura, eu já havia me posicionado contra o retorno diversas vezes, mas, ao me colocar novamente e dizer que a decisão era absurda e antiética, o pesadelo começou.

Minha vida virou um inferno, porque para centenas de torcedores do Santos, o título de 2002 valia tanto que era mais relevante que o estupro coletivo de uma mulher. Como eu, que me dizia torcedora, poderia ser contra a volta de um ídolo? E quem era eu para dizer se o crime tinha acontecido ou não? Virei alvo de fake news e espalharam de forma mentirosa entre torcedores que eu tinha incentivado patrocinadores a deixarem o clube. Nada mais representativo do que aquilo que Milly Lacombe chamou de "pacto da masculinidade". Porque eu, uma mulher, queria diminuir o tamanho de um ídolo como ele, Robinho.

Até hoje, nenhum deles nunca me pediu desculpas. Alguns continuam me atacando por diversos outros motivos. A verdade é que eu preferia ser feliz do que ter razão. Preferia estar errada e pedir desculpas, caso o crime nunca tivesse acontecido. Mas aconteceu, segundo a Justiça.

A história fica para sempre.

Nós não vamos mudar quem foi o grande protagonista do maior título recente do Santos. Mas cabe, sim, a cada um de nós decidir o que faremos com essas lembranças, com esses sentimentos, com essa idolatria. A minha foi enterrada.

Valores não se compram na esquina. Um título de futebol não pode ser maior do que os direitos das mulheres. E ao ter a confirmação da condenação, doeu ainda mais saber que o advogado de Robinho, Franco Moretti, tentou dizer que o crime foi consensual e usou um dossiê da vida privada da vítima para descredibilizá-la. Doeu porque todo dia, nas devidas proporções, toda mulher passa por isso. Toda mulher é humilhada com argumentos sobre a aparência, a roupa, o jeito de sentar, de sorrir. Tudo o que uma mulher faz pode, eventualmente, ser usado contra ela.

A pena, talvez, nunca seja cumprida. Mas há, sim, uma pequena sensação de justiça. Justiça pela vítima e justiça por nós, mulheres que nos opusemos à contratação do jogador de volta ao Santos em 2020. Que fomos atacadas, humilhadas, ameaçadas e, hoje, vimos alguma justiça acontecer.