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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

No Brasil, ser mulher e jornalista é um risco, mas não vamos recuar

Reuters
Imagem: Reuters
Maria Esperidião

Especial para Universa

14/07/2021 04h00

Diariamente, as mulheres jornalistas no Brasil tentam se desviar de escuridão e lama para exercerem o direito constitucional de trabalhar livremente como colunistas, repórteres, editoras, apresentadoras, analistas, fotógrafas e cinegrafistas.

Na última semana, organizações de classe, colegas, políticos e entidades civis internacionais prestaram solidariedade à Juliana Dal Piva, jornalista do UOL atacada por Frederick Wassef, advogado da família Bolsonaro. A respeito desse ato covarde, outra ilusão se desfez.

A hostilidade à colunista põe abaixo a ideia de que a estratégia de calar a imprensa por parte do governo e de seus apoiadores seria ampla, sem um "alvo específico". A misoginia e a intolerância à presença das mulheres nos espaços públicos se tornaram um elemento fundamental para entender a natureza desses ataques.

Nem sempre o emaranhado de estatísticas nos ajuda a dimensionar como o machismo se manifesta no Brasil. É preciso mergulhar mais. Levantamento da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) mostra que, em 2020, 56,8% das vítimas de ataques no meio digital eram mulheres jornalistas. Se olharmos para os dados de ataques protagonizados pelo presidente Jair Bolsonaro, a proporção é mais alarmante: dois homens já foram vítimas de insultos, enquanto sete mulheres se tornaram alvos diretos de ofensas do presidente, somente no primeiro semestre de 2021.

Um estudo exploratório dos ataques realizados nas redes sociais contra duas jornalistas mulheres, Patricia Campos Mello (Folha de S.Paulo) e Vera Magalhães (TV Cultura/O Globo), e contra um jornalista homem, Ricardo Noblat (Metrópoles), ressalta claramente as diferenças.

Do total de tweets com ofensas de gênero observados nos três casos, 45,2% foram dirigidos a Campos Mello, 49% a Magalhães e apenas 5,8% foram observados nas redes sociais de Noblat. No entanto, a análise pilotada pela cientista política Rafaela Sinderski mostrou que, nesse último caso, a maioria dessas ofensas foi direcionada à mulher do jornalista. Para a pesquisadora da Abraji, isso nos permite concluir que, quando as mulheres não são o principal alvo das agressões marcadas pelo gênero, ainda assim elas são usadas como instrumentos para atacar os homens.

Insultos de gênero são aqueles que não buscam apenas minar a credibilidade da profissional mas, sobretudo, utilizar a condição de ser mulher como forma de hostilização

O agressor ou agressora pode se valer de comentários ofensivos sobre a aparência da jornalista, como "velha" e "feia"; pode associá-la a sexo chamando-a de "vagabunda" e "prostituta"; pode evocar estereótipos machistas sobre a personalidade feminina como "histérica" e "descontrolada"; ou fazer uso de termos condescendentes, como "mulherzinha" e "querida".

O cruzamento entre gênero e raça torna-se ainda mais cruel. Um usuário do Twitter disse que Gabi Coelho, do time de checagem de notícias do Estadão, só entrou no jornal por meio de cotas. Este é apenas um exemplo; há inúmeros relatos subnotificados de racismo atávico.

Para a antropóloga e professora Débora Diniz, ser uma mulher jornalista é uma profissão que se tornou arriscada no Brasil. "O risco está em falar a verdade ao poder. Em desafiar o patriarcado que nos governa. As mulheres jornalistas se convertem em insuportáveis pelo que dizem e por quem são", afirmou a Universa.

Apelar à linguagem degradante é fundamental na cruzada contra as mulheres. Em outra ameaça dirigida à Juliana Dal Piva por um homem que também xingou Daniella Lima, da CNN Brasil, o sujeito fez questão de abrir seu post mencionando a genitália masculina: "Explicações de c* é rol@...FDP maldita, sua horinha vai chegar".

Bolsonaro já usou como metáfora tosca a palavra "furo" (jargão jornalístico para definir informação exclusiva) para afirmar, de forma caluniosa, que Patricia Campos Mello queria "dar o furo" ("transar"). Chocou o mundo e entrou para o mesmo pódio de mandatários sexistas, como Rodrigo Duterte, presidente das Filipinas, que recomendou disparar contra a vagina de guerrilheiras, já que, sem ela, "são inúteis".

Estudo recente da organização Repórteres sem Fronteiras os classificou como "predadores da liberdade de imprensa". A lista reúne outros 35 chefes de Estado ou de governo que impõem uma repressão massiva à liberdade de imprensa e cita a preferência da dupla em proferir discursos estigmatizantes contra as jornalistas consagradas de seus países.

Intimidadas por grupos de fanáticos e por homens que inclusive já estudaram leis de liberdade de expressão e de imprensa, as mulheres jornalistas não deixarão de seguir com o dever de investigar e relatar os fatos. Qualquer democracia reconhece o lugar do jornalismo para a própria garantia dos valores democráticos e deve se preocupar também com os desafios particulares enfrentados pelas mulheres jornalistas para melhor superá-los.