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OPINIÃO

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BBB não apaga jornada de Lumena, mas fará parte dela para sempre

BBB 21: Lumena Aleluia, participante que gerou debate sobre ativismo negro dentro e fora da casa - Globo/João Cotta
BBB 21: Lumena Aleluia, participante que gerou debate sobre ativismo negro dentro e fora da casa Imagem: Globo/João Cotta

Colaboração para Universa

03/03/2021 04h00

Pronto, Lumena! Venha para o lado de fora. É hora de se refazer e nos contar como está sua criança de dez anos. Aquela que você disse na apresentação ao grupo da casa que estava ansiosa para encontrar, deixá-la brincar, sorrir e se divertir.

Percebemos que você, apesar do conhecimento em psicologia social, chegou a acreditar que a casa mais "vigiada" do Brasil seria um lugar seguro para o exercício de resgate do sonho da infância, que estava sedimentado por causa dos seus "corres". Nós mulheres pretas vivemos mesmo esta dor de proteger nossas meninas, geralmente resumidas na infância a "negrinhas", "cabelo pixaim", "agressivas" e etc...

Sabemos que não era para ser assim. Como deve ter sido difícil frustrar a chance de realizar esse sonho, reprimir os seus planos e recolher novamente a menina Lumena. A realidade te convocou à batalha sem trégua, atiçando discórdias, desequilíbrios e choros em rede nacional. Em uma ocasião você mesma disse que o "BBB não é pra amadores". Tem razão, já não é mais. Foi-se o tempo em que o objetivo do programa era apenas alçar anônimos sonhadores a efêmeras celebridades (salvo pouquíssimas exceções!). O BBB21 já é histórico pelas questões sociais e raciais que foram pautadas e muitas devemos a você, mesmo sabendo dos cortes e edições.

Esta edição com a maior representatividade negra foi pensada, sem dúvida, para dar vazão ao debate identitário, razão pelo qual reuniu nove participantes afrodescendentes. Mesmo diante disso, você nem percebeu que já sairia em vantagem se usasse o seu maior trunfo, mas preferiu fugir de você mesma. Debates sobre a questão racial já haviam sido levantados na edição anterior. Vimos o quanto foi uma decisão difícil conter as próprias experiências e se distanciar do que te mantém na "jornada".

É certo que não há, em nenhuma de nós mulheres negras, a obrigação de carregar a todo momento bandeiras identitárias, abrir discursos e falar no "academiquês", para indicar o nosso lugar de fala.

Sua passagem pelo BBB só reforça o quão gigante são as estruturas que atravessam o nosso cotidiano. Vivemos em uma sociedade em que as relações estão calcadas no escravismo de corpos negros, racista, sexista, patriarcal, lgbtfóbica, intolerante e ponto final. Por aqui nossas crenças e valores ainda seguem invisibilizados.

Você mostrou para uma grande audiência que, a partir de agora, é preciso ter coragem para vislumbrar o BBB como um lugar de sonhos, pois quem se aventurar a ser porta-voz de suas verdades acabará num profundo vazio, se perderá entre a realidade e o jogo.

Você nos ensinou que é impossível experimentar outros lugares sem levar dentro de nós as nossas memórias herdadas, nossa ancestralidade e, no seu caso, a crença no seu orixá. Você é uma mulher preta forjada na arte, no cuidar do outro, no falar sobre outras humanidades e no reconhecimento de que sua militância foi composta na base, com mulheres, cujos passos vêm de longe, como nos diz Jurema Werneck, com outras dores e muitas afetividades. Portanto poderá recorrer ao seu passado para retomar o presente, quantas vezes for necessário.

A militância que te constitui não descansa e a branquitude, incomodada com o debate, também não! Muitas pautas estão em você e te fizeram chegar até o Big Brother Brasil. Quem seria a Lumena hoje, mulher preta no auge dos seus 29 anos, se tivesse silenciado no episódio em que foi provocada a convocar a casa e o Brasil, a refletir sobre a questão das travestis, transsexuais, das gays afeminadas e outras tantas humanidades violentadas?

Se participar do BBB21 foi mais um sonho frustrado, aqui fora as coisas continuam as mesmas e precisando da sua voz. Infelizmente, mulheres e meninas negras ainda sofrem violências similares como assédio, abuso, violência sexual, tráfico e exploração, geralmente por parte de pessoas do próprio convívio. Pelo menos, 75% das mulheres assassinadas no Brasil são negras e ainda somos o país que mais mata travestis e transsexuais no mundo.

Portanto, liberte a menina Lumena de dez anos para que possa contar para ela que não vai desistir dos seus "corres". Não deixe que duvidem mais da sua alegria, do seu sorriso fácil, da sua timidez e do seu choro quase infantil. É tempo de retomar o percurso, para que o dedo em riste e as formas de defesa, que você usou no jogo, não sejam o que vão te definir daqui por diante. Que o "retorno a Saturno", que você anunciou na chegada à casa, te leve aos braços da sua ancestralidade, para o refazimento necessário. Enfim, o BBB21 não vai apagar a sua jornada, mas fará parte dela para sempre!

* Jornalista e doutoranda em Ciência da Religião (PUC-SP), Claudia Alexandre pesquisa sobre raça e gênero na mídia, na cultura dos sambas e nas tradições de matrizes africanas.