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Coronavírus está mexendo com a cabeça (e cabelo) das mulheres negras

Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

Monique dos Anjos*

Colaboração para Universa

16/05/2020 04h00

Lembro do dia em que uma trancinha de kanekalon desprendeu do meu cabelo e caiu no pátio da escola. Uma colega achou e me perguntou se aquele objeto estranho era meu. Morrendo de vergonha, não vi alternativa a não ser concordar quando me perguntaram se seria algum tipo de tererê ou até mesmo parte de uma pulseira, ignorando o óbvio.

Parece trivial, mas nos anos 1980, auge das paquitas e do cabelo comprido (e loiro) com franja, a ideia de usar uma imitação barata - economicamente falando - de cabelo feita basicamente de plástico era vergonhosa, pelo menos para pessoas não negras. Já para uma criança retinta com crespo 4C, tranças eram uma solução tão natural quanto fazer um rabo de cavalo para quem nunca tinha ouvido falar em fator encolhimento ou usado um creme Kolene na vida.

A preocupação em esconder o meu afro consumiu boa parte do meu tempo e autoestima

Desde as horas gastas com escova de pente de ferro aquecido na boca do fogão (e esfriado na orelha incauta) às químicas alisadoras que queimavam o coro cabeludo, fazendo abrir feridas vermelhas que levavam dias para cicatrizar.

Antes que você diga que jamais passaria por uma tortura dessas, é preciso compreender bem o contexto daquela época. Valéria Valenssa e Isabel Fillardis eram umas das poucas jovens negras na TV e nem por isso tidas unanimemente como símbolos de beleza. O padrão era outro, ainda mais destoante do que vendem hoje.

As revistas tampouco tinham meninas negras, muito menos com cabelo natural. Nenhuma Mc Soffia, Ana Paula Xongani ou Thelminha mostrando a diversidade do cabelo crespo. Era liso ou nada. Ou melhor, ou máquina. Na falta de salões de beleza especializados, já cheguei a ter meu cabelo raspado em uma barbearia.

Quando cheguei à fase adulta, cuidar do cabelo continuou sendo uma saga. Até que descobri o maravilhoso mundo das laces, aquelas perucas hiperrealistas usadas por Beyoncé, Rihanna, Lizzo e companhia.

Tive todos os tipos. Das que imitavam o long bob da Michele Obama, às que pareciam com os cachos da Diana Ross. Tudo isso aconteceu quando morava no exterior e era fácil comprar esses produtos. Ao voltar para o Brasil, o hábito de colecionar laces se tornou inacessível. E como elas não duram para sempre, vi meu estoque se desgastar e acabar pouco a pouco.

Monique dos Anjos - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

Passei a usar, pela primeira vez em muito tempo, meu cabelo natural. Fiquei impressionada com a elasticidade, força e forma dos fios. Até me cansar de novo. Foi quando resolvi voltar a usar trancinhas. Reparou como elas estão na moda? Entre penteados das influenciadoras e os polêmicos posts sobre apropriação cultural, esse estilo cheio de significado para quem tem ancestralidade africana ficou, finalmente, popular. Até que veio a pandemia.

Minha raiz tinha crescido dois dedos e algumas tranças já tinham caído quando percebi um movimento silencioso nas redes sociais. Muitas das meninas e mulheres negras que sigo estavam com seus cabelos naturais. Assim como eu, elas estão tendo que lidar com as complicações estéticas que o isolamento trouxe, além de todo o restante, claro. Minha trancista se ofereceu para vir em casa. Mas como quebrar o protocolo de isolamento por uma questão tão vã?

Porém não se trata simplesmente de retocar a raiz ou da saudade de ter esse tempo de autocuidado. Para uma mulher negra, estar de bem com o cabelo pode ser a diferença entre ter a autoconfiança para compreender que cada traço que faz de nós quem somos deveria ser exaltado ou ter receio de situações simples como abrir a porta de casa e ser confundida com a ajudante.

Para uma mulher branca a falta de manutenção das luzes, por exemplo, pode ser lida pelos menos instruídos como simples falta de vaidade.

Para uma mulher negra, sair na rua com o cabelo desarrumado aumenta o risco de sofrer ataques racistas graves como ter a bolsa revistada e ser parada pela polícia.

Talvez por isso seja tão difícil ver meu cabelo sem creminho, fitagem, tranças ou qualquer artimanha que o aproxime do padrão de beleza eurocentrado que ainda rege involuntariamente meu gosto. Aparentemente, precisaremos de mais do que um par de meses de isolamento para entender que não importa o quanto nos esforcemos para agradar quem encontramos lá fora se as piores críticas vem de dentro.

Contudo não se pode perder de vista que gosto é uma construção social. Frases como "eu prefiro você de tranças" ou "cabelo liso parece mais arrumado" só evidencia a educação racista que recebemos no que tange a definição de beleza. No Brasil, ser bonito é parecer com Gisele Bündchen, mesmo quando mais da metade da população esteja mais para Iza do que para Giovanna Ewbank.

O que resta, portanto, é admitir que tudo bem ficar de mal com o cabelo de vez em quando, contanto que a gente se lembre que o vilão não é ele e sim quem um dia tentou nos ensinar a odiá-lo. E se não numa quarentena para rever conceitos ultrapassados, quando?

*Monique dos Anjos é jornalista. Já morou fora, aprendeu espanhol antes de ficar fluente no alemão, trocou uma pós-graduação em relações étnico-raciais por um terceiro filho, mas continua consumindo tudo que pode sobre negritude para fortalecer a ela e aos seus