Judiciário

'Se ela bebeu, não houve estupro': falas machistas em decisões da Justiça

Por Camila Brandalise

O Brasil tem leis específicas para crimes contra mulheres, mas isso não é suficiente para protegê-las. Em sentenças e decisões do Judiciário, falas machistas e que culpam vítimas são recorrentes.

A pedido de Universa, as advogadas Isabela Lourenção e Júlia Granado, especializadas em direitos das mulheres e criadoras da página @des_atando.nos, fizeram um levantamento e analisaram algumas dessas frases. Confira:

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Se a ofendida bebeu por conta própria, dentro de seu livre arbítrio, não pode ela ser colocada na posição de vítima de abuso sexual pelo simples fato de ter bebido."

Sentença proferida por juiz do Rio Grande do Sul em 2019
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Segundo as advogadas, a ingestão de bebida alcoólica, seja ela feita pela vítima por espontânea vontade ou mediante coerção ou fraude, faz com que a vítima não possa apresentar resistência, configurando, portanto, estupro de vulnerável, que é um crime mais grave.

"Por isso, a decisão, além de machista, é completamente ilegal", afirmam.

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Enquanto a mulher não se respeitar, não se valorizar, ficará nesse ramerrão sem fim. (...) Se a representante quer mesmo se valorizar, se respeitar, se proteger, então bata firme, bata com força, vá às últimas consequências, e então veremos o quanto o couro grosso do metido a valente suporta"

Juiz de Goiânia ao negar medida protetiva no ano de 2018
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A violência doméstica é cíclica, variando entre fases de agressão e da chamada "lua de mel", quando o agressor se desculpa por seus atos.

Por isso, além da dependência econômica e emocional, não é incomum a mulher desmentir a violência sofrida em audiência, o que não significa que ela não tenha respeito por si.

"Significa que ela precisa de ajuda multidisciplinar para sair desse ciclo. E o juiz, ao sugerir que o sistema judiciário é ineficaz e que a vítima deveria contra-atacar o agressor, a decisão, além de afrontar a Constituição, pode colocar a vida dela ainda mais em risco", afirmam as advogadas.

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A verdadeira identidade do movimento feminista, portanto, é de engenharia social e subversão cultural e não de reconhecimento dos direitos civis femininos. (...) Diante dos usos e costumes instalados na sociedade, promovidos pelo próprio movimento feminista, entender ofensivo o discurso do requerido é, no mínimo, hipocrisia."

Sentença de juíza de Franca, cidade no interior de São Paulo, em 2019
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A ação foi movida pelo Ministério Público contra um universitário que organizava trote com teor ofensivo às mulheres. A juíza, além de negar o pedido, afirmou que o próprio movimento feminista, bem como todas as mulheres que lá estavam, eram responsáveis por esse tipo de comportamento.

"Ela deixou de analisar o caso concreto e focou em mostrar seu repúdio ao movimento feminista, que preza por igualdade de gênero, dentre outras bandeiras, em todos os âmbitos sociais."

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É bem verdade que se trata de menor de 14 anos, mas entendo ser crível que o réu tenha se enganado quanto à real idade da vítima (...) levando em consideração que era pessoa que se dedicava ao uso de drogas e ingestão excessiva de bebidas alcoólicas, que já manteve relações sexuais com diversos homens."

Sentença do Superior Tribunal de Justiça absolveu homem de 79 anos acusado de estuprar menina de 13, em São Paulo, em 2018
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Quando estupros são praticados contra menores de 14 anos, não existe margem para discussão sobre a presença ou não de consentimento. No entanto, contrariando a lei, a decisão colocou em discussão o comportamento da garota, considerando que fossem fatos determinantes a não considerá-la de fato vítima."

Isabela Lourenção e Júlia Granado,
advogadas
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A violência, em tese, empregada contra a vítima, não observou um tal que reduzisse por completo a sua capacidade de oferecer resistência às investidas do acusado, evitando, assim, a consumação do coito. Por outro lado, quando [o acusado] passou a colocar o preservativo, tornou-se vulnerável, permitindo a ela desvencilhar-se e buscar ajuda na estrada, o que também não o fez."

Sentença do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, de 2009
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Exigir que a vítima se desenvencilhe do agressor para considerar que o crime de fato ocorreu, além de extremamente machista, legalmente, parou em 1603, nas Ordenações Filipinas, avaliam Isabela e Júlia.

"La estava disposto que a vítima deveria gritar para comprovar que não estava consentindo."

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Ganha R$ 1.300,00 e quis ter 2 filhos? (...) Se não tem como cuidar, então dá para adoção, põe num abrigo. [...] Se ele [o ex-companheiro] é mau pai, eu não tenho culpa. Eu vou fazer o quê? Vou pegar este negão e encher ele de tapa? Não é meu trabalho."

Juiz de Vara de Família de São Paulo em 2014
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A mulher buscou a Justiça para efetivar o direito à pensão. "Mas encontrou um judiciário que impõe tão somente a ela a obrigação de sustentar e cuidar de seus filhos, isentando completamente a obrigação do pai", afirmam as juristas.

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Publicado em 24 de setembro de 2021.
Reportagem e montagem: Camila Brandalise; Edição Clarice Cardoso.
Fontes: Isabela Lourenção e Júlia Granado, advogadas especializadas em direitos das mulheres e criadoras da página @des_atando.nós.