'Pedais são cores': Pegge une pintura e música no estilo 'A Love Supreme'

Não faltam artistas de diferentes lugares que, em sua dinâmica de comunicar ao mundo vivências, sentimentos e perspectivas, acabaram criando uma relação um tanto religiosa, em especial na música negra.

O artista visual e músico Pegge, nascido e criado em Ermelino Matarazzo, distrito de Guarulhos, na Grande São Paulo, é um desses nomes.

Influenciado pelo jazz, pelo neo-soul e pelo grafite, sua trajetória é costurada por tintas e instrumentos musicais, de tal forma que as duas expressões artísticas, as artes visuais e a música, se fundem em seu exercício de criar e existir.

Com uma nova exposição individual, intitulada "Amor Supremo: antes de tudo havia o som" e curadoria assinada por Nathália Grilo, na MITS Galeria (Rua Padre João Manuel, 740, Jardim Paulista), em cartaz até o dia 7 de novembro, o artista proporciona ao público uma experiência imersiva no resultado das suas investigações artísticas.

Ali, a narrativa é construída a partir e através da música espiritual negra, em 9 obras cuja estética passeia entre o surrealismo e os autorretratos.

Pegge desenvolve pinturas e músicas no estilo A Love Supreme', de John Coltrane
Pegge desenvolve pinturas e músicas no estilo A Love Supreme', de John Coltrane Imagem: Daisy Serena/UOL

O título da exposição faz referência direta ao respeitado álbum "A Love Supreme", de John Coltrane, marco da música espiritual negra e uma das maiores influências de Pegge.

Seu método de trabalho tem o som como origem e destino: Pegge escuta álbuns enquanto desenvolve a ideia na tela.

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Além de Coltrane, nomes como Mateus Aleluia, Virgínia Rodrigues, Moacir Santos e Alice Coltrane se fizeram fundamentais, dando ritmo aos movimentos dos pincéis que traduziram suas experiências espirituais e afetivas em cor, forma e presença.

Músico, ou artista sonoro autodidata, que toca cerca de 10 instrumentos, Pegge lançará um álbum musical de neo-soul, com produção musical de Phix, a ser disponibilizado no dia 11 de outubro, que irá traduzir, em 9 faixas autorais, o processo de escuta e pintura que resultou na exposição.

O musico e pintor Pegge
O musico e pintor Pegge Imagem: Daisy Serena/UOL

O TOCA fez uma visita ao ateliê do artista para saber um pouco mais sobre o trabalho.

TOCA - Como a música entrou na sua vida?

Pegge - Minha mãe foi quem me apresentou à música. Foi ela que me colocou nesse caminho. Quando eu tinha 7 anos, ganhei um cavaquinho que era tão grande pra mim que eu pensava que era um violão. Eu nunca aprendi a tocar, porque ninguém na minha casa era da música. Eu sou o único que se tornou artista.

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Quando eu tinha 12 anos, a gente se mudou, e eu fui estudar em uma escola onde todos os meninos tocavam violão e eu achava isso muito foda. Eu sofria muito racismo nessa escola, e pensei que talvez, se eu aprendesse a tocar violão, pudesse parar de passar por essas situações. Então, perguntei para eles onde faziam aula e fui lá me inscrever.

Eu achei muito chato o método de ensino e decidi aprender sozinho. Ouvia muito blues nessa época: Jimi Hendrix, muito rock, Stevie Ray Vaughan, uns guitarristas assim, John Mayer, Gary Clark Jr... e fui aprendendo.

Minha mãe tinha um bar na época, e eu trabalhava lá com minha irmã, de garçom, com o objetivo de comprar minha primeira guitarra. Consegui comprar uma acústica, parecida com uma Gibson. Foi nessa mesma época que eu tive ceratocone e fiquei cego de um olho. Fiz um transplante de córnea e precisei ficar 6 meses no escuro para a recuperação. Nesse momento, eu não conseguia desenhar, inflamava muito, e aí eu só tinha o violão.

Quando foi que você encontrou o jazz? Porque até hoje ele influencia o seu fazer artístico.

Minha mãe tinha uma coletânea da editora Abril, o "Clássicos do Jazz", e eu achei um do Nat King Cole com uma dedicatória que o namorado dela na época tinha dado de presente.

Achei ele muito estiloso, com o topetinho e fui ouvir. Minha mãe sempre foi uma pessoa muito musical, ela sempre teve muitos CDs. Nessa coletânea tinha artistas como Miles Davis, Duke Ellington, John Coltrane, Herbie Hancock, Thelonious Monk, Lee Morgan...

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Ouvi muito o Lee Morgan quando descobri que ele tinha apenas 18 anos e já fazia vários solos. Foi aí que eu tive vontade de tocar trompete também.

Além dos quadros da exposição, você também vai lançar um álbum. Como é esse processo de concepção do trabalho musical?

Demorou um pouco para eu conseguir me sentir confortável com a minha música, porque por muito tempo eu queria ser o que eu ouvia. Mas cada ser é singular, e não tem como ser outra pessoa, você toca como você vive. Depois que comecei a me dedicar a estudar as coisas, o teclado, a guitarra, e ter contato com outros músicos, isso me ajudou muito.

Me ajudou também a minha amizade com o Hodari, porque lá na quebrada ninguém escutava as mesmas coisas que eu, e eu e ele tínhamos as mesmas referências. Ele ainda me apresentou outro mundo. Me deu acesso aos pedais da guitarra, às possibilidades, ao loopstation... me fez entender outras cores.

Foi aí que eu consegui entender que tocar é igual pintar. Os pedais são as cores, os instrumentos são os pincéis e dá pra relacionar os contrastes, as texturas?

A exposição se fez há muito tempo. Quando eu e a curadora pensamos na concepção, já tínhamos o objetivo de lançar um álbum junto. Foi um movimento muito natural, eu colocando os instrumentos no ateliê, comprando meus primeiros pedais e estudando o que queria tocar. Eu ficava aqui tocando para as telas e depois ia pintar. Ficava esse ciclo de produção, e tudo foi naturalmente se concebendo. Agora que a exposição já está completa, o álbum vai chegar como uma trilha sonora.

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Imagem: Daisy Serena/UOL

O álbum terá 9 faixas, a mesma quantidade de telas em exposição. Os nomes das faixas são os mesmos que os das telas?

Não necessariamente. Eu quero que as faixas tenham nomes de pigmentos ou de químicos que existem nas tintas que uso bastante. Cádmio ou cobalto... acho esses nomes muito bonitos, e eles despertam muitos sentimentos quando você vai pesquisar sobre o pigmento. Muitos deles produzem efeitos diferentes e eu quero esses efeitos na música.

Como você entende a potência da música negra e das tradições espirituais como ferramentas de resistência?

Eu acho que tendo referência. Eu gosto muito dessa palavra, e referência é algo muito importante pra mim. Porque, sem ver, sem ouvir, eu não seria o que sou hoje. Todas as referências, de modo de pensar e existir, como o Mateus Aleluia, quando diz que "antes de tudo havia o som". Depois você vai entender e começa a tê-lo como referência de pensador, não só como músico.

O Moacir Santos fazia trilha sonora e tinha um álbum chamado "Coisas", e aí você vai entender o que são essas "coisas" para você, sabe? Você tenta entender quais visuais ele pensou para as trilhas criadas. E aí, dessa referência se faz estudo; do estudo se faz resiliência, para você poder ver mais de uma coisa em uma coisa só.

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Então, para mim, vira resistência quando se torna conhecimento. E é o que eu busco também com o meu trabalho. Não são músicos que estão fazendo o meu álbum: sou eu. Se a pessoa vai atrás para entender, ela vai ver que não precisa de muito para fazer as coisas que ela quer, apenas de conhecimento.

Se a gente não souber para onde vai, qualquer caminho serve. Essas figuras me deram resiliência e resistência para continuar o meu caminho.

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