Como o misterioso grupo SAULT chama à revolução sem nunca mostrar o rosto

Com o recém-lançado disco "10", o grupo britânico SAULT, atualmente, é um dos mais profícuos na música. Com seis anos de existência, e 11 álbuns já gravados, o grupo durante muito tempo ficou no anonimato — fazendo com que as atenções fossem todas voltadas para o som.

A música do grupo é um amálgama da música negra, indo do soul ao funk, do gospel ao house, da disco ao afrobeat, com letras duras sobre a realidade do povo preto chamando os ouvintes à revolução - inclusive à espiritual.

A essa altura já se sabe quem são as principais cabeças da hidra musical: o produtor Deaj Josiah Cover e sua companheira, a cantora Cleopatra Zvezdana Nikolic, mais conhecidos como Inflo e Cleo Sol.

Mas além disso, do currículo de ambos e de algumas figuras com quem trabalham, o que mais se sabe? E como conseguem gravar tantos discos bons em tão pouco tempo?

Voltemos no tempo até 2019, quando o então desconhecido grupo lançou dois singles e dois álbuns de forma praticamente anônima.

Praticamente porque quando as cópias físicas de "5" - o primeiro dos álbuns, o segundo chama-se "7" - chegou ao mercado em maio daquele ano apenas um nome aparecia em sua contracapa: Inflo.

O cara que já havia trabalhado com gente como Michael Kiwanuka, Jungle e Little Simz era creditado como o faz tudo no disco, bem como no seguinte. Mas e aqueles vocais maravilhosos? No ano seguinte, sem nenhuma entrevista, anúncio, single, clipe ou qualquer tipo de divulgação surgem mais dois trabalhos, "Untitled (Black Is)" e "Untitled (Rise)". E, mesmo sem nenhum alarde, a coisa explodiu.

O DJ Gilles Petterson pôs as mãos em uma cópia e tocou "Black is" na íntegra na BBC. Alguns mistérios começaram a ser desvendados e soube-se que colaboravam no SAULT os três supracitados, além de Chronixx, Jack Peñate e das cantoras Kid Sister e Cleo Sol - casada com Inflo desde... bem, ninguém sabe.

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Avessos à divulgação

Esta história poderia acabar aqui, com o grupo entrando num hiato, já que de lá pra cá Cleo lançou quatro discos solo produzidos pelo marido, que, por sua vez, entre muitas outras coisas, assinou três faixas do álbum "30", de Adele.

Mas não. No 2021 pandêmico eles lançaram apenas o disco "Nine", que os levou pela primeira vez às paradas britânicas, só existiu por 99 dias (sim, o álbum atingiu a 99° posição nos charts e após 99 dias foi apagado dos serviços de streaming e nunca mais foi prensado) e rendeu uma indicação ao Grammy por "(Rise)".

Chronixx e Cleo Sol estão entre os colaboradores da banda SAULT
Chronixx e Cleo Sol estão entre os colaboradores da banda SAULT Imagem: Divulgação

Já em 2022 eles resolveram tirar o atraso. Em abril entregaram - mais uma vez sem divulgação - "Air", seu sexto disco em 3 anos, e se todos foram surpreendidos com sua chegada, a surpresa real ficou a cargo do conteúdo: nele o SAULT gravou sete canções com orquestra e coro de vozes, compondo um álbum de música clássica com cara de trilha sonora de filmes que não existem mais.

Mas o ano estava só começando. Era 10 de outubro (ou 10/10) quando surgiu "10", um EP com uma única música chamada "Angel" cuja duração era exatamente 10?10".

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Se você acha isso meio incomum, novembro chegou com Inflo e cia. lançando nada menos que cinco álbuns de uma só vez, contabilizando 56 músicas.

As britânicas Cleo Sol e Little Simz emprestam a voz e as rimas para o som do SAULT
As britânicas Cleo Sol e Little Simz emprestam a voz e as rimas para o som do SAULT Imagem: Divulgação

O premiado "11", "AIIR", "Earth", "Today & Tomorrow" e "Untitled (God)" foram disponibilizados no WeTransfer por 5 dias (sacaram a numerologia?), mas para baixá-los era preciso descobrir uma senha presente na mensagem que a banda deixou aos fãs: ?godislove?(Deus é amor).

A partir daí, as mensagens espiritualizadas já presentes anteriormente ganharam mais força, talvez pelo nascimento do filho de Cleo e Inflo em 2021.

Após a enxurrada de discos, o grupo, sempre avesso a qualquer tipo de exposição, anunciou um show.

Em Londres, apresentaram o inédito "Acts of Faith". A ideia era se apresentar também em Nova Iorque (tocando o "5"), Los Angeles ("Black Is"), Canadá ("Rise"), Alemanha ("11"), Paris ("Air") encerrando a turnê na África (com "Earth"), mas os shows nunca aconteceram.

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Ressuscitado na Páscoa

"Acts of Faith" foi lançado no Natal, mais uma virando as costas para o mundo cada vez mais imagético e mantendo-se focado na música (mesmo as capas de todos os álbuns segue a mesma estética completamente minimalista, sem nenhuma foto da banda).

Seguindo sua própria cartilha anti-mainstream/capitalismo/indústria musical, o SAULT ?apareceu? nesta Páscoa, quando tiraram um coelho de sua cartola sem fundo e o chamaram simplesmente de "10".

Mais uma vez apostando na diversidade da música preta como fio condutor de suas canções e as recheando com mensagens espiritualizadas de positividade.

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No novo trabalho, o grupo emula o saudoso Quincy Jones em faixas sacudidas como "T.H." e "R.L", chama o afrobeat pro rolê em "P.", nos dá um respiro ao som de "I.L.T.S." e das belíssimas "L.U." e "H.T.T.R." para então fechar a pista de forma incendiária com "W.A.L." e "S.O.T.H.". Tudo isso guiado pela doce e inebriante voz de Cleo Sol.

O disco surgiu nos serviços de streaming na sexta-feira da paixão, desapareceu no sábado de aleluia e ressuscitou na madrugada do domingo de Páscoa. E como vocês viram todas suas 10 músicas foram batizadas apenas com as inciais ("T.H." é The Healing; "P.", Power, "W.A.L.", We Are Living, etc).

Para além de detalhes técnicos ou das tentativas de desvendar qual é a deste verdadeiro coletivo musical, "10" é daqueles discos que parecem feitos sob medida para iluminar dias nublados, e com seus enxutos 42 minutos de puro groove espantar qualquer bad trip.

Que o SAULT siga misterioso, politizado e nos surpreendendo com trabalhos maravilhosos. Amém!

Opinião

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