Complexo e plural: barulhento leque sonoro de Gaga marcou o pop para sempre

Fashionista, polêmica, ousada, inspiradora e esquisita são alguns dos adjetivos que Lady Gaga mereceu desde que estourou em um desavisado cenário pop, na segunda metade dos anos 2000.
Quase sempre, essas qualificações estavam se referindo à imagem e ao comportamento de Gaga: seus looks anticonvencionais, sua estética exagerada, sua exploração ostensiva da engrenagem da fama, sua militância pelas minorias.
Mas e a música, sem a qual ela não teria chegado ao público em primeiro lugar?
Desde 2008, a cantora estadunidense lançou sete álbuns solo de estúdio (incluindo a dobradinha 'The Fame' e sua edição expandida, 'The Fame Monster'), de onde saíram um barulhento leque de hits que marcaram gerações.
É uma discografia cujos méritos artísticos muitas vezes acabam ficando em segundo plano em relação à parte visual e performática da cantora.
O que é um tanto injusto já que Gaga construiu um repertório musical complexo, plural, único e sem medo de experimentar.
Assim, seus trabalhos até podem ter oscilado entre unanimidade e incompreensão ao longo desse percurso, mas que nunca se diga que ela não se arriscou. O que é uma das marcas dos grandes artistas, se pensarmos em David Bowie, Prince, Madonna, Caetano Veloso e Beatles.

Super refrões em batidas potentes
Sua fase inicial, incluindo o álbum de estreia 'The Fame' e 'Born This Way' traz um som que destila as características mais eficientes do pop e da dance music, onde super refrões são transportados por ritmos eletrônicos potentes.
Atenta ao legado de gerações anteriores da música de pista, Gaga uniu o vozeirão encorpado das divas da disco music (seu timbre muitas vezes remete à lendária Donna Summer) à sonoridade sintética e dramática da eurodance dos anos 1990 e aos beats musculosos do techno e do electro. "Bad Romance", de 2009, é um exemplo primoroso dessa junção.
Mecânico e sexual
O apelo da música dançante eletrônica (house, disco, techno, funk brasileiro) reside muito no encontro entre o mecânico e o sexual ("I Feel Love", de Donna Summer, é o protótipo).
Em músicas como "Poker Face", Gaga atualizou esse modelo para uma linguagem pop do fim dos anos 2000, quando a estética mais eletrônica e de sintetizador (autotune se popularizando, David Guetta virando o produtor da vez no pop americano) suplantou levadas mais calcadas no R&B e em timbres mais "orgânicos".
Hino fora da norma
Outro caso de referências certeiras foi 'Born This Way', sucesso de 2011, que faz um aceno a 'Express Yourself', de Madonna, na melodia, e a "I Was Born This Way', sucesso cult de 1977 de Carl Bean, um momento pioneiro de orgulho LGBTQIA+ do tempo da disco music, no título.
Com uma letra que exaltava a individualidade e a aceitação, se tornou um hino moderno para as minorias, claro, mas também para qualquer pessoa que se visse fora da norma.
Influência para o pop
Com seu sucesso global, Gaga foi uma influência decisiva para que o pop dos anos 2010, incluindo aí Katy Perry, Beyoncé, FKA Twigs, Dua Lipa, Kanye West e muito da esfera k-pop (com destaque para Blackpink), incorporasse tanto sonoridades eletrônicas e sintetizadas de forma mais escancarada como buscasse explorar uma camada mais freak, menos certinha, no seu som.
Em especial, Gaga e Kayne chegaram a planejar uma turnê conjunta em 2009 e 2010, mas que acabou cancelada.

Entre o familiar e o bizarro
No álbum 'Artpop', de 2013, Gaga teve que ultrapassar a barra altíssima que ela mesmo tinha criado nos primeiros trabalhos.
Trazendo uma abordagem mais experimental aos elementos pop e dance, o álbum não teve tanto êxito como os lançamentos anteriores. Ainda assim, várias de suas músicas buscaram entortar refrões e batidas, como que criando um alter ego esquisito para formas pop.
Essa visão prenunciou a onda do hyperpop, de nomes como SOPHIE e A.G. Cook, onde componentes musicais melódicos, alegres e açucarados são retorcidos e sobrepostos para produzir músicas que navegam entre o familiar e o bizarro.
Multidimensional e versátil
Nos álbuns 'Joanne' (2016), que trouxe pop-rock e country, e nos dois lançamentos em que colaborou com Tony Bennett, ícone do jazz e da canção tradicional americana, Gaga expressou dimensões musicais que se distanciaram muito da exuberância plástica da sua primeira fase.
Foram obras que apresentaram Gaga como artista multidimensional e versátil, capaz de performar dentro de parâmetros convencionais da música.
Em 'Chromatica', de 2020, Gaga voltou a apostar na sonoridade eletrônica e dançante, especialmente a house music dos anos 1990. Com participações de Ariana Grande e Blackpink, foi o disco certo na hora errada, já que a pandemia tinha suspenso atividades coletivas e dançantes por tempo indeterminado.

Muito diferente foi a recepção de 'Mayhem', o álbum que aterrissou com muito estardalhaço em 2025. Como mostra o sucesso 'Abracadabra', é Gaga fazendo com perfeição aquilo que a projetou como artista e que os seus fãs vinham pedindo: música dançante e sintética para ser cantada por grandes multidões.
Mas Gaga não seria uma artista para simplesmente reciclar glórias passadas: diversas faixas do último álbum trazem também uma estridência, uma sujeira sônica, que remete ao rock e ao industrial, como ressaltou a própria cantora ao dizer que o grupo Nine Inch Nails foi uma das inspirações do trabalho.
Lady Gaga impactou o curso da música popular internacional do fim dos anos 2000 para cá. Em termos de música e atitude, ela é um ícone que motiva artistas que vão de Pabllo Vittar a Chappel Roan. Seu retorno ao holofote neste ano reforça de como esquisitice e subversão são ingredientes importantes na batalha contra o tédio da normatividade.
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