Do kuduro ao romântico: festival projeta a nova África sonora em Cabo Verde
A 11ª edição do AME, sigla para Atlantic Music Expo, festival que acontece anualmente na cidade de Praia, capital de Cabo Verde, reafirmou seu papel como ponte entre continentes, palco para novos talentos e espaço de reflexão sobre os rumos da música global.
Em um ano de efeméride histórica — o cinquentenário da independência do país africano —, o festival ganhou contornos ainda mais simbólicos, evocando passado, presente e futuro em quatro dias de shows, encontros e celebrações.
Entre 7 e 10 de abril, o AME reuniu artistas de países como Senegal, Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, Portugal, Canadá/Haiti, Espanha, Itália e Brasil, mas foi a prata da casa que mais brilhou.
Subiram nos diferentes palcos tanto artistas que estão começando — que vão lançar ou acabaram de lançar o primeiro trabalho —, quanto nomes mais consagrados.
É o caso Leroy Pinto, que tocou no Palácio de Cultura Ildo Lobo: até agora, o cantor natural da ilha de Tarrafal tem três singles de seu próximo álbum disponíveis. Ou de Taresa Fernandes, uma sumidade quando se fala do Batuque cabo-verdiano.

Independência musical
No ano em que Cabo Verde comemora 50 anos de sua independência, o festival tornou-se também um tributo à resistência, à cultura como instrumento de libertação e às figuras que moldaram a nação, como o líder revolucionário Amílcar Cabral — cujo centenário foi comemorado no ano passado.
Praticamente todos os artistas que subiram nos diferentes palcos do AME, não apenas os cabo-verdianos, lembraram de sua luta.
A guineense Karyna Gomes fez do momento o mote de seu show e cantou canções que iluminam a trajetória pela liberdade de ambos os países sob domínio de Portugal.
Além de saudar Cabral, ela lembrou de sua conterrânea combatente Titina Silá, para quem cantou uma música recém recuperada por ela em um arquivo histórico do país. A cada vez que ela fazia uma fala de introdução para uma música, punhos se erguiam na plateia.
Berço de vozes como Cesária Évora, Codé di Dona, Tito Paris e Mayra Andrade, Cabo Verde segue revelando talentos de tirar o fôlego.
Outra representante de destaque da nova geração é Zulu, nome artístico de Zuleica Barros, que recém revelou ao mundo o EP "Briza". Nas faixas, ela mostra que a tradição musical do arquipélago, da morna e do funaná, por exemplo, não apenas se renova, como ganha novas formas e batidas ao aproximá-la do jazz.
"O que mantém uma ligação maior [da minha música] com a minha ilha, Boa Vista, é a forma como as pessoas, desde os meus ancestrais, vivenciavam a tradição tanto das cantadeiras, como do landú, que eu trago também no meu EP", aprofunda Zulu.

Do romantismo ao kuduro
A programação do AME desenhou uma rota sonora precisa na capital Praia, entre o pátio do Palácio da Cultura Ildo Lobo — onde aconteceram os showcases diurnos — e os dois palcos noturnos, localizados na rua Pedonal e na praça Luís de Camões, no histórico bairro do Plateau. Os shows começavam com uma pontualidade e uma qualidade técnica de fazer inveja a qualquer evento musical, no Brasil ou fora.
A poucos metros de distância entre si, os dois palcos reuniam tanto a população local, quanto os turistas, deixando as ruas da cidade com um clima familiar e festivo.
A diversidade de sons foi um dos pontos altos: do romantismo de Fábio Ramos e Dieg, ambos shows que atraíram o maior número de pessoas, à energia do kuduro eletrônico da dupla luso-angolana Throes + The Shine, o AME reafirmou seu compromisso com a pluralidade.
A curadoria revelou não só a riqueza musical do continente africano, sobretudo dos países lusófonos, como também propôs diálogos poéticos e históricos que ultrapassam o entretenimento.
E é claro que o Brasil, tendo a similaridade da língua com o país africano, também esteve presente. A cantora mineira Roberta Campos apresentou, em show solo ao violão, alguns de seus sucessos e, também, músicas novas.
Com um disco recém-lançado, "Coisas de Viver" (2025), ela já é uma antiga conhecida do público cabo-verdiano — sobretudo pelas músicas que emplacou nas novelas brasileiras, amadas no outro lado do Atlântico.
"Eu já sabia algumas canções que o pessoal de Cabo Verde conhece, que são músicas que não podem faltar e que eu queria apresentar também para as pessoas que estão fazendo parte aqui do festival", contou Roberta.

Na rota da música mundial
Outro brasileiro presente na 11ª edição do AME foi o rapper Criolo. Dessa vez, não para cantar, mas para falar sobre propriedade intelectual na era digital, ao lado de nomes como Dino D?Santiago e do advogado português Ricardo Castanheira.
Além dos shows e workshops, o evento promoveu uma conversa no Palácio do Governo, com a presença do primeiro-ministro de Cabo Verde, Ulisses Correia e Silva, do ministro da Cultura, Augusto Veiga, e do novo diretor do AME, Benito Lopes, que assumiu o comando do festival este ano.
Em seu discurso, o primeiro-ministro reforçou o caráter informal do encontro e afirmou:
"O AME e o Kriol Jazz Festival são os eventos mais importantes em termos de cultura, música e economia em Cabo Verde [...] e esses eventos não seriam possíveis sem a participação de vocês."
O gesto dos ministros de Estado foi uma importante demonstração do reconhecimento da cultura não apenas como uma riqueza simbólica, mas como indústria criativa importante para a economia - um movimento que coloca Cabo Verde na rota da música mundial.
Em um país de pouco mais de meio milhão de habitantes, mas com uma das heranças musicais mais vastas do Atlântico, o evento mostra como se faz música com alma: aquela que toca quem escuta porque é feita com cuidado, profundidade, poesia e história.
Enquanto as ruas da Praia voltam ao ritmo do cotidiano, as reverberações do AME seguem pulsando — nas playlists de quem passou por lá, nas conexões criadas entre artistas e curadores e no orgulho de um povo que, há 50 anos, canta sua liberdade.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.